Rosely Belisqui: Falar com as Mãos e Ouvir com os Olhos

Em 2018 saí de São Paulo, cidade onde nasci, hoje com cerca de 11,45 milhões de habitantes, para morar no Sul de Minas Gerais, na Serra da Mantiqueira, numa cidade com pouco mais de 4.700 mil habitantes. Mudança radical no ritmo, na cor, no cheiro, na luz, na vida.

Continuo escrevendo por vezes cartas que podem ou não serem enviadas.
Depois que encerrei as atividades do meu escritório de projetos de Arquitetura, não ter que pensar num novo projeto, não desenhar, não ter uma obra em andamento para visitar, me fez ficar num limbo criativo por um longo período. Certa vez numa visita ao Museu Lasar Segall em São Paulo, soube que lá havia uma oficina intitulada Escrita Criativa, um curso sobre o ato de escrever, aos sábados à tarde. Por que não? resolvi me inscrever e passei a frequentar os encontros com um grupo bastante heterogêneo sob a mentoria de um conhecido escritor.
 
Em dado momento percebi que eu estava arquitetando um texto com o manejo cuidadoso do espaço e do tempo da narrativa. Escrevi poemas, crônicas, contos. Continuo escrevendo por vezes cartas que podem ou não serem enviadas.
Compreendi que as 26 letras do alfabeto oferecem ao escritor os recursos para a escolha das melhores palavras  que levarão o leitor adiante, na leitura. O segredo está em urdir letras gerando palavras que, se bem combinadas, vestem a ideia que se deseja transmitir como uma segunda pele.
Mas as letras assim como o desenho, são códigos complexos. Estabelecer uma estrutura é um requisito e não um inibidor, da liberdade de criar.

Rosely Belisqui, sem título, colagem, desenho a nanquim e guache, 2014.

A técnica se impõe para transformar uma ideia em algo tangível: um texto literário, um livro, uma casa para morar, uma cidade. O arquiteto é acima de tudo um pensador que imagina o projeto na mente e desenha para registrar e enquanto desenha esquadrinha os detalhes da obra, dimensiona, posiciona, dá-lhe vida.
 
Como é que um arquiteto elabora o projeto de um edifício diferente do projeto, para o mesmo edifício, feito por um outro arquiteto? O objeto dessa questão é produzir beleza, é seduzir o outro. Mas Arquitetura não é só forma mas também a busca de solução para um conjunto de necessidades  que exige a presença de uma equipe multidisciplinar, de um trabalho sistêmico.
 
Não há portanto nenhum conflito entre arte e técnica. Assim como no texto literário, em Arquitetura a forma não se separa do conteúdo.

Oscar Niemeyer, esboço e projeto construído, Palácio da Alvorada – Brasília (1957).

Oscar Niemeyer, Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, Avilés, Espanha (2011).

E podemos pensar também na geografia como cenário da Arquitetura. O arquiteto pode pensar em ocupar o espaço com uma obra transgressora, transformadora mas que não termina em si depois de pronta porque  vai interagir com a geografia, o entorno que a torna infinitamente inacabada.

Numa de suas palestras o professor e arquiteto Paulo Mendes da Rocha(1) cita trecho da canção Corcovado: …da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo…  e comenta que esse é um discurso maravilhoso e a beleza está no fato de se ver o Corcovado pela janela.

Na relação dentro/fora, a janela é um divisor de realidades. Atrás de quem olhava o Corcovado pela janela poderia ter uma criança correndo na sala, uma panela chiando no fogão, enfim, mediante recortes generosos, as janelas além de proporcionar entrada de luz natural, ventilação adequada, também oferecem ao observador a possibilidade de olhar para fora. 

Inserida num contexto em movimento contínuo, a cidade em dado momento histórico muda sua paisagem e uma série de aspectos do passado e do presente coexistem. Assim a obra arquitetônica nunca está terminada podendo sempre ser ajustada, readaptada ao seu uso e entorno.

Pinacoteca do Estado, São Paulo, o museu de belas artes mais antigo da cidade, reaberto ao público em 1998 após a intervenção de Paulo Mendes da Rocha, que manteve a estrutura original do edifício do século XIX, adaptando os espaços para as novas necessidades funcionais da Pinacoteca. Foto: Nelson Kon.

Imagem à esquerda: Pinacoteca do Estado, foto: Leonardo Finotti. Imagem ao centro: Corcovado, Rio de Janeiro. Imagem à direita: Pinacoteca do Estado, foto: Nelson Kon.

Convido também para uma reflexão sobre o pertencimento. O escritor enquanto constrói a obra literária sente-se dono das palavras que escolheu, daquela história e o livro, quando editado, entrega o conteúdo ao leitor.
Já dizia Paul Auster(2) que ler é a relação mais íntima possível entre desconhecidos. O texto se desprega das mãos do escritor e passa a habitar também no imaginário do leitor. Lucio Costa(3), arquiteto e urbanista que projetou Brasília, capital federal do Brasil, afirmou certa vez: A cidade que viveu dentro da minha cabeça já não me pertence – pertence ao Brasil.
 
Essa declaração soa como um suspiro de libertação.

Esboço do Plano Piloto de Brasília — Foto: Arquivo Público do Distrito Federal/Fundo Novacap.

Aqui onde implantei território e morada, a paisagem que se descortina por todos os ângulos de visão fica traçada na mente e quando registrada, se aprisiona no papel. É a geografia mudando paradigmas. 
 
A experiência de conexão com a Natureza me leva a usar outros recursos para criar e construir objetos ainda não decifrados anteriormente por mim, como os totens de pedras que espalho no gramado pelos arredores da casa. Para montá-los preciso me remeter aos conceitos da física e então obter o equilíbrio entre as peças.
 
Arte, ciência e técnica convivem em paz no meu jardim;

 

 

 

falar com as mãos e ouvir com os olhos.

Rosely Belisqui, sem título, desenho a nanquim, 2019.

Anita Goes, series Névoa, Serra da Mantiqueira, 2020.

Rosely Belisqui  é arquiteta e urbanista formada em 1976 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade  Mackenzie em São Paulo, Brasil Trabalhou com projetos em escritório próprio. Em literatura, foi premiada com o conto A Partilha pelo Concurso Nacional de Contos e Poemas organizado pela Universidade Federal de Goiás, Campus de Catalão, Brasil.
Mãe de um filho e de uma filha, avó de um menino
Hoje mora numa chácara, na cidade de Gonçalves localizada na Serra da Mantiqueira em Minas Gerais, Brasil
Participa como conselheira do Instituto Socioambiental Mantiqueiros

Imagem título desse ensaio: Claudio Edinger, São Paulo, 2009.

1. Paulo Mendes da Rocha – (1928/2021) – arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade  Mackenzie em São Paulo, Brasil, tornou-se reconhecido mundialmente Foi professor de projeto da FAU-USP, vencedor do Pritzer em 2006, agraciado com o  Leão de Ouro na Bienal de Veneza  pelo conjunto da obra , com o 28º Prêmio Imperial do Japão e anunciado como Gold Medal do ano de 2017 do Royal Institute of British Architects (RIBA).
2. Paul Auster – (1947) – romancista, ensaísta, argumentista americano, tem uma extensa obra literária que está publicada em mais de 40 idiomas.
3. Lucio Costa – (1902/1998) – arquiteto, urbanista, estudioso e teórico da arquitetura e conservador do patrimônio. Figura-chave na implantação e consolidação da arquitetura moderna no Brasil.
Em 1957, Costa venceu o concurso para o plano piloto de Brasília, a nova capital do Brasil, inaugurada em 1960. Concebeu  a base em dois eixos que se cruzam em ângulo reto – o eixo rodoviário-residencial e o eixo monumental –, como a gravar no terreno o sinal da cruz.
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