Este artigo oferece uma visão abrangente dessa contradição fundamental, examinando três dimensões cruciais: lições históricas sobre arte e comércio, os paradoxos do sistema digital atual e caminhos emergentes para uma verdadeira independência criativa. Com dados verificados e estudos de caso concretos, propomos não apenas um diagnóstico, mas um roteiro para navegar nesse cenário complexo.
Nevit Dilmen, neon music sign, 2006.
- A Lição dos Séculos: Arte, Mecenato e Dependência
A relação entre criação artística e sustentabilidade econômica nunca foi simples ou idílica. Michelangelo Buonarroti, muitas vezes celebrado como o arquétipo do gênio criativo livre, trabalhou sob contratos minuciosos com a Igreja. Documentos do Vaticano revelam que, na Capela Sistina (1508–1512), o artista enfrentou pagamentos irregulares e pressões constantes quanto a prazos e exigências técnicas. Embora a soma total recebida permaneça incerta nos registros históricos, sabemos que a obra durou quatro anos sob condições físicas extremas.
Ludwig van Beethoven, outro ícone da autonomia artística, dedicava suas sinfonias a patronos nobres — e frequentemente reescrevia trechos inteiros para agradar seus gostos. A famosa Eroica, inicialmente dedicada a Napoleão, teve sua dedicatória rasgada quando o compositor se desiludiu com o imperador, sendo rapidamente rededicada ao Príncipe Lobkowitz, de quem dependia financeiramente.
Um estudo sistemático publicado no Journal of Musicology (2019) analisou 620 compositores entre 1600 e 1900 e revelou que 73% dependiam exclusivamente de um único patrono ou instituição para seu sustento. Essa dependência moldou não apenas carreiras individuais, mas gêneros inteiros — da música sacra ao desenvolvimento da ópera como espetáculo cortesão.
O caso de Vincent van Gogh talvez seja o mais emblemático dessa dicotomia. O pintor, cujo Retrato do Dr. Gachet foi vendido por US$82,5 milhões em 1990, vendeu apenas uma tela em vida. Sua correspondência com o irmão Theo revela uma luta constante contra a pobreza e o isolamento, mesmo enquanto produzia algumas das obras mais valorizadas do planeta.
II. O Paradoxo da Era Digital: Democratização ou Nova Aristocracia?
A promessa de democratização trazida pela revolução digital se revelou, em muitos aspectos, ilusória. Dados do Luminate Year-End Report 2023, que analisou mais de 4 milhões de artistas em plataformas globais, mostram que o 1% mais ouvido concentra 90% de todos os streams.
Enquanto isso, 86% de todas as músicas disponíveis nas plataformas foram tocadas menos de mil vezes no ano anterior, segundo o Spotify Loud & Clear 2023.
Essa concentração extrema se repete em outras dimensões do mercado. O estudo Inclusion in the Recording Studio?, da USC Annenberg (2023), revela que apenas 22% dos artistas mais reproduzidos são mulheres, e as minorias raciais continuam sub-representadas em cargos de destaque. No Brasil, uma pesquisa da ABRAMUS (2021) mostrou que 62% dos profissionais de música ao vivo precisaram interromper suas atividades durante o pico da pandemia, muitos migrando para outras ocupações.
O recente conflito entre a Universal Music Group e o TikTok, em janeiro de 2024, destacou a vulnerabilidade dos artistas nesse ecossistema. Quando a maior gravadora do mundo retirou seu catálogo da plataforma, artistas emergentes relataram quedas de até 60% no alcance, como reportado pela Billboard em fevereiro. Casos como o da cantora brasileira Tássia Reis, que migrou parte de seu trabalho para o Bandcamp e relatou um aumento de três vezes na receita líquida (Revista TRIP, março de 2023), apontam para alternativas possíveis — embora ainda marginais.
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III. Financeirização e Resistência: A Batalha Contemporânea
O capitalismo financeiro contemporâneo introduziu mecanismos de monetização sem precedentes — e novas formas de dependência. Kanye West (hoje Ye) transformou o álbum Donda em um produto financeiro, vendendo NFTs com stems vocais por até US$210 mil, como documentado pela Rolling Stone em outubro de 2021. Enquanto isso, conglomerados como a Warner Music Group vêm adquirindo catálogos inteiros de artistas independentes, transformando discografias em ativos para fundos de investimento.
Nesse contexto, iniciativas como o coletivo Unpaid Debt, de Nova York, ganham relevância especial. Segundo The Defiant (janeiro de 2024), o grupo desenvolveu contratos inteligentes na blockchain Ethereum que só liberam retorno aos investidores se três condições forem atendidas: (1) acesso garantido à saúde mental para o artista, (2) pagamento antecipado de 50%, e (3) manutenção total do controle criativo. Esses contratos, auditáveis publicamente, representam uma inovação radical na relação entre arte e capital.
IV. Caminhos Possíveis: Em Direção à Autonomia Real
A verdadeira independência no mundo atual exige mais do que talento criativo — requer domínio consciente de ferramentas econômicas. Três pilares centrais emergem:
Cooperativismo Digital
Selos como a YBÊ, do Brasil, operam em modelo de copropriedade, com participação direta dos artistas nas decisões e nos lucros. O relatório anual de 2023 mostra uma distribuição média de 60% da receita líquida para os criadores, contra 15–25% nos contratos tradicionais.
Blockchain como Instrumento
Plataformas como a Audius, conforme seu whitepaper (v2.3, 2023), utilizam contratos inteligentes para garantir que 90% da receita vá para os artistas — contra cerca de 70% no Spotify. A transparência algorítmica desses sistemas permite auditoria independente dos pagamentos.
Diversificação Estratégica
Artistas de vanguarda como Arca e Xênia França exemplificam a diversificação multifacetada. Arca equilibra performances imersivas (45%), colaborações com marcas (35%) e NFTs (20%). Xênia combina shows ao vivo (40%), licenciamento (25%) e educação musical (20%). Esses casos refletem o princípio defendido pela Music Industry Research Association: artistas com múltiplas fontes de renda mostram maior resiliência no mercado volátil atual.
Aos 79 anos, Elza Soares financiou via Catarse (2016) a remasterização de três álbuns, arrecadando R$157 mil e mantendo o controle artístico — modelo posteriormente adotado por outros ícones da música brasileira.
Elza Soares. Photo: Sourced from Instagram.
Conclusão: Reaprender a Liberdade
A música na era do capitalismo financeiro não precisa escolher entre a submissão ao mercado ou o isolamento criativo. Como artistas como Arca demonstram — transitando entre NFTs, direção criativa para marcas de luxo e óperas digitais — o caminho está em orquestrar seu próprio ecossistema.
O sistema atual, com suas contradições e concentrações, não é inevitável nem imutável. A história mostra que a relação entre arte e comércio sempre foi dinâmica — e que os períodos de maior transformação foram aqueles em que artistas ousaram reinventar as regras do jogo.
Para contribuir com essa visão, coescrevi um livro com o jurista Nichollas Alem, Music Business: Um Guia Direto para Artistas e Bandas, que detalha 35 formas distintas de monetizar a música — da composição aos NFTs. Como escreveu o visionário do jazz Sun Ra: “Não toque o blues — faça o blues tocar você.”
Neste momento decisivo, esse conselho nunca foi tão urgente. A próxima revolução musical virá não apenas de novos sons, mas de novos modelos de valorização do trabalho criativo — e está sendo escrita agora por artistas que compreendem tanto harmonia quanto contratos inteligentes.
Sun Ra. Photo: Alton Abraham.
Alexandre Azeredo é empresário artístico brasileiro, formado em Publicidade com especialização em Gestão de Marcas. Iniciou sua carreira em planejamento estratégico em agências líderes como W/McCann e DPZ.
Em 2013, migrou para a indústria da música, concluiu uma pós-graduação em Music Business na UCLA (Los Angeles) e coordenou a turnê de Mallu Magalhães nos EUA.
Como empresário 360° do artista Fabio Brazza, conquistou 1 Disco de Ouro e 1 de Platina, além de parcerias com grandes marcas como Itaú, Nike e NBA. Desde então, ministrou palestras e workshops em mais de 20 empresas e universidades e é sócio da Aumenta o Som, agência de marketing digital para artistas, que representa nomes como Hermeto Pascoal, Itiberê Zwarg e Ricardo Herz.
Para saber mais sobre Alexandre Azeredo @alexandre_r_azeredo