Karranca Groove: do que são feitos o barro e a água na obra de davi de jesus do nascimento

Para os bichos e rios, nascer já é caminhar.

Maria Bethânia

Os lábios se curvam involuntariamente, os olhos se alargam e rapidamente se estreitam, as sobrancelhas se unem. É nesse momento que a ponta da língua procura compreender a complexidade desse gosto tão único. Quando um rosto encontra o sabor do tamarindo, é como se lampejos de surpresa e intensidade investigassem cada expressão.

É uma feição careta/carranca, de desconcerto, mas também de fascinação, como se a mente estivesse processando a experiência gustativa e decidindo se deve celebrar ou desafiar esse encontro inesperado.

Há uma vivacidade na expressão facial, um vigor que transcende a mera função de comer. É como se o rosto estivesse envolvido em um diálogo momentâneo com o alimento, trocando impressões e reações. E, à medida que a acidez se dissipa, é comum observar um sorriso contido ou uma risada suave.

A aliança entre o azedo e o doce tem coloração âmbar e é caráter distinto dos tamarindos, frutos de casca aveludada, com formatos escultóricos e tons terrosos, como se fossem pequenas lascas de terra molhada ou de troncos úmidos de árvores. Vastos nas regiões quentes do Rio São Francisco, muitas vezes se confundem com bichos da terra pendurados nas folhas, mas também poderiam ser pedaços de madeira cavados na carranca.

Ao provar o tamarindo, nossas feições acompanham a experiência da língua no encontro de um gosto peculiar e se assemelham às carrancas que, historicamente, protegem barcos e casas à beira do Rio São Francisco. Acredita-se que essa fisionomia do assombro espanta maus espíritos e acalma as águas. Para as comunidades ribeirinhas, não há escudo maior do que ter fé nas proas.

O vínculo entre o tamarindo e a carranca indica toda a dimensão espiritual secular que carrega os rostos de humanos e de animais, especialmente quando há fusões entre estes, com expressões exageradas de espanto, expurgo e combate. Essa correspondência visual, simbólica e cultural é apenas uma das janelas para adentrar a obra de davi de jesus do nascimento e nos ajuda na elaboração de um percurso poético que possa dar conta de um universo tão imenso de fabulações e confluências entre as águas.

Para perceber as nuances de sua produção é preciso encarnar para si o devir carranca – assim como define davi – e olhar para os lados com as portas dos ouvidos.

Davi de Jesus do Nascimento, carne de sol, 2022, objeto de águas guardadas, balança com tamarindos, 51 x 52 x 27 cm Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

II

Imagine nadar em um rio de tamarindos ou que carcaças de peixe-boi saíssem de suas costas ao anoitecer. Imagine um berço rosa para ninar cardumes e um menino que, de tanto olhar para uma carranca, se fundiu com uma proa e todas as manhãs é visto nas embarcações.

Ao imaginar, vemos. E é assim que davi nos mostra as encantarias de seu povo e de seu território. Artista barranqueiro, de pele feito lama de rio e palavras de quem tem na boca a memória dos peixes, sua origem vem das águas do São Francisco. Quando criança, via caracóis saírem das varizes de sua avó e abraçava as pessoas para sentir o cheiro das frutas que elas comiam. Com olhos radiantes e curiosos, davi encharca a realidade ao seu redor com filtros de poesia, evidenciando a pureza contida nas coisas como elas realmente são, nas coisas como elas também poderiam ser ou nas coisas quando ganham impensados propósitos.

São essas as saudades que banham seu trabalho. Lembranças de um tempo em que todos nós já vivemos, quando a inocência se traduz em gestos simples e espontâneos, em um mundo que é novo e emocionante a cada descoberta. Acompanhar davi artista é também conhecer um pouco de davi quando criança, como se estivéssemos rebobinando as fitas VHS que guardam os segredos e alegrias da família do Nascimento. O universo do menino esculpido de barro, que cresceu entre os girinos, nos barrancos do São Francisco, das Gerais, com o primo mestre carranqueiro, o pai mestre barqueiro e a mãe encantada nas águas do rio.

E, pelas bonitezas do olhar sensível de quem é parente da terra, encontramos também os dizeres difíceis de sua realidade adulta, que atesta as mudanças na paisagem, a diminuição das águas, os desmatamentos das margens, as transformações causadas pela ingerência de sistemas criados para o adoecimento dos rios, como assoreamentos, transposição, seca e rompimento de barragens (2). Macroprocedimentos que estão presentes no dia a dia das comunidades ribeirinhas e que são causadores de forçosos movimentos diaspóricos de famílias, ao longo da extensão do grande rio que cruza diversos estados brasileiros.

Essa é também a história de sua família baiana ao chegar a Pirapora, em 1975, nos tempos áureos da cidade portuária, quando o respeitável evento de fim de tarde era a chegada dos tradicionais barcos a vapor. O translado de passageiros e mercadorias entre o Nordeste e o Norte de Minas fomentou a economia da região, entre os séculos XIX e XX, e fez de municípios do interior locais dinâmicos de alto turismo e diversidade cultural (3). Mesmo sendo um símbolo imperial, a navegação por meio dos vapores foi o principal meio de transporte no extenso trecho navegável do Rio São Francisco e foi proibida devido ao risco de acidentes decorrentes dos bancos de areia assoreados. Apenas um exemplo dos impactos que a cultura do extrativismo gera nas comunidades tradicionais e na liberdade do ir e vir. Pirapora é matéria-prima para o trabalho de davi de jesus, de onde sua prática cria interlocuções com o mundo, e a história da cidade é um capítulo importante para se conhecer o Brasil fluvial e os processos migratórios no interior do país.

Davi de Jesus do Nascimento, Enlace, 2018, fotografia digital, 80 X 45 CM. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

III

A tardança de tempo que cada lugar nos pede diz muito sobre a produção de davi. Assim como a pausa de contemplação diante do horizonte visto de dentro do barco, o artista nos presenteia com a reiteração e reincidência de suas imagens, palavras, casos fabulados e, principalmente, da narrativa de seu território. Com quase uma década de produção, davi segue a sonhar, a escutar e conversar com o Rio São Francisco que, por sua vez, o convoca constantemente.

Aliás, sua escuta abrange também as sabedorias das avós, dos pescadores, dos insetos, dos barrancos e das carrancas. Com delongas, persiste na insistência de um trabalho que não se restringe a ser um tema de pesquisa. Pelo contrário, temáticas não se sustentam no arco do tempo. Para davi, fazer sua arte é se transmutar em matéria para além de seu corpo. Ou melhor, uma composição matérica, onde é possível ampliar todos os sentidos do corpo, para que a comunicação ocorra de múltiplas maneiras.

E, assim, é necessária a teimosia. Pois são objetos, seres, desenhos, aguamentos, imagens e aparições que perseguem o artista e reivindicam presença. Trata-se de um repertório de imagens pertencentes a um contexto singular, que volta e meia reaparecem no imaginário de um povo. Diz-se que não importa quantas vezes tentam matar um rio, sempre haverá uma nascente prestes a brotar. A persistência é adaptação e fluxo contínuo em busca de seu deságue de destino.

A partir da constância, davi de jesus do nascimento aprofunda campos conceituais que dão sustento à sua obra e que nos oferecem possibilidades de estudos ampliados, podendo abrir discussões tangenciadas acerca de seu universo artístico. É possível traçar diversas leituras tendo sua obra como ponto de referência. Aqui, me proponho a navegar por três possibilidades, as quais acredito serem de interesse em sua pesquisa: família, amuletos e monstruosidade.

Imagem canto esquerdo: Davi de Jesus do Nascimento, maura murou a casa com o mau da língua, 2022, carranca e tamarindos. Imagem canto direito: Davi de Jesus do Nascimento, Furor de Peito e Remela, Sailing vessel with spills from the series “Gritos de Alerta“, 2022. Image ao centro: Davi de Jesus do Nascimento, Aguamentos Barranqueiros da série “Sorvedouro”, 2022, aquarela sobre papel, 15x 20 cm cada. Fotos: Cortesia da Mitre Galeria.

Família

No vídeo, a irmã apresenta as duas cadelas, Rodela e Lessi; os três coelhos, Teca, Nica e Minnie; e o casal de papagaios, Sandy e Junior. Segue com a câmera mostrando o ambiente do quintal até chegar na cozinha, no momento de servir o almoço de domingo, descrevendo cada familiar como se estivesse à frente de uma reportagem. Naquela ocasião, tios, sobrinhos, pais, filhos e avós comem juntos moqueca de surubim. Trata-se de uma gravação de 3’57”, em filmadora VHS, de um dia comum em família, que, posteriormente, foi projetado em uma caixa de madeira com água, sob o título de pirão de peixe com pimenta, na segunda exposição individual de davi (4). Uma das primeiras obras concebidas em parceria com seu pai Davi (de quem o artista herda o nome) é uma, entre tantas outras, possibilidades de reativar lembranças de um cotidiano familiar, ressignificando experiências de luto, saudade, conflitos e cura.

A prática caseira de filmar e fotografar foi comum durante toda a infância de davi e de seus irmãos e primos, ao longo dos anos 1990 e começo dos anos 2000. São registros que testemunham desde o crescimento das crianças aos festejos tradicionais, passando pelas ações de impacto humano no curso do São Francisco. Além de importante documento de observação do contexto e região, essas fotos e vídeos são a autorização de acesso a um legado da imagem e ao direito à memória, algo negado para muitas famílias racializadas, étnicas e desprovidas de recursos.

O que vemos (e participamos) nas imagens consiste em momentos de lazer elegidos como dignos de lembranças para a posteridade e que foram reunidos em coleção de fitas de vídeo, remasterizados para DVD e muitos álbuns de fotos. Ao nos darmos conta do conjunto de peças, é possível identificar escolhas, prioridades, intimidade e laços de afeto. São apontamentos dos instantes que realmente importam – escolhas precisas e únicas –, decisões que foram roubadas de nós pelas câmeras digitais.

Davi de Jesus do Nascimento: Calmon Island, 2023, Retrato-enchente de nossa mãe, fotografia analógica do acervo de família, butuca em remolho, 100 x 70 cm Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

Outra característica importante desta coleção são os “retratos-enchentes”, rostos de familiares com expressões sérias e atentas – fotos típicas das que servem para certidões. Ampliadas e com as marcas do tempo no papel impresso, as imagens, quando expostas, ganham notas poéticas reveladas pelo artista, atestando histórias íntimas de vida do bisavô, João das Queimadas, da tataravó Ana Josefa Paixão, do tio Neno e da vó Joaninha.

De tempos pra cá, davi decidiu ser guardião desse tesouro, reunindo em acervo registros de parentes próximos e distantes. O acervo de família vem fazendo redemoinhos em sua produção, a partir de gestos de “remolhar” as imagens, e firma a presença de seus antepassados e ancestralidades como reverência. Pelo título da série butuca em remolho podemos também conhecer o sorriso de sua mãe, Eliane Vieira do Nascimento, falecida precocemente, ainda jovem. O encantamento de sua mãe foi um marco decisivo em sua vida, desaguando na comprovação pessoal em seguir a profissão de artista e como alimento para a reconfiguração familiar e de reaproximação com seu pai e seu irmão.

Quem conhece davi e sua maneira de trabalhar sabe, logo rapidamente, que a colaboração e o consentimento de seus familiares na elaboração de suas obras são um condicionante. Assim como ter as condições apropriadas para uma apresentação fiel e honesta de sua comunidade. Isso porque seu trabalho parte do Rio São Francisco com o propósito cabal de curar as feridas familiares, os traumas sociais cravados em seu corpo dissidente, quando jovem em uma cidade do interior, e as angústias coletivas de um povo que é parente do rio sob constante política de morte. Desta maneira, toda a sua produção é uma emocionante carta de amor à sua mãe, numa verdadeira tentativa de dividir com ela o caminhar de sua gente e sua terra.

Imagem à esquerda: Davi de Jesus do Nascimento, Retrato-Enchente de Minha Tataravó Ana Josefa Paixão, 2013-2022, fotografia analógica do acervo de família, 60 x 40 cm. Imagem à direita: Davi de Jesus do Nascimento, Retrato-Enchente de tio Neno, 2013-2022, fotografia analógica do acervo de família, 60 x 40 cm. Ambas as imagens são da série “Flood Portraits”. Fotos: Cortesia da Mitre Galeria.

Assim, as aquarelas, ou melhor, “aguamentos barranqueiros”, como denomina o artista, especialmente as séries a correnteza zanza silêncios e para desalagar, retratam cenas de vizinhos, amizades, conhecidos e desconhecidos de sua cidade, mas que podem se estender para todas as cidades que beiram o grande São Francisco. Aparições de corpos aguados, quase que disformes, fazendo alusão aos momentos coletivos de comunhão com o rio, mas também aos lamentos das enchentes e alagamentos. As obras nos mostram as pessoas dessa terra, de corpo feito em barro marrom.

Como metodologia para nunca esquecer o inegociável, o artista tem convidado seu pai para colaborações em trabalhos escultóricos, vídeos e fotografias. Por sua vez, Davi, pescador e mestre barqueiro, elabora, com a ajuda do filho, um novo entendimento de arte, diferente da marcenaria que constrói barcos, móveis e instrumentos musicais, mas aquela que articula com o capital simbólico das grandes exposições e instituições de arte. Nas recentes exposições de davi, é constante a presença de barcos, ora inteiros, ora em partes – como oratórios, casas de tamarindo, caixão silenciador ou proas que dão a rota no espaço –, todas as obras em autoria compartilhada com seu pai, Davi Nascimento. Um dos trabalhos mais emblemáticos dessa parceria é singra, projeto elaborado para um festival virtual (5), onde o processo completo de construção de um barco à vela, sua apresentação ao rio e posterior navegação é acompanhado, passo a passo, por meio de fotos e vídeos de Caio Esgario, companheiro de vida do artista. Em meio ao labor do barqueiro, davi dialoga com os gestos do pai através de estudos corporais e sonoros.

Davi de Jesus do Nascimento, pesca-ameaça de naufrágio da barca ou ensaio para morrer com o rio, 2016, engasgo de espinha, fotografia digital, 46 x 100 cm. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

Amuletos

Como proposta de projeto artístico para a Bolsa Pampulha 2019, davi propôs carregar por seis meses uma carranca de 20 quilos pelas ruas de Belo Horizonte. A ação consistia em algo novo para sua prática, porém, representava um gesto de combate, que poderia fortalecê-lo no processo de adaptação à nova cidade de morada – já que as carrancas são esculturas sagradas de proteção e um elemento familiar para o artista. Contudo, corpo-embarcação extrapolou expectativas e se transmutou em um rito de passagem, um acontecimento para além das categorias de arte. O tempo se alargou e o que seriam meses durou um ano, quando carranca e corpo se fundiram em massa única com lampejos de suplício e de gozo.

A proposta nasceu como performance, mas logo o artista se deu conta de que as categorias não dariam conta daquela experiência do corpo e do espírito. Apesar de por vezes o corpo exausto, a insistência do sacrifício elevou a ação a um percurso espiritual de autoconhecimento, cura e conciliações com suas raízes e terra natal(6). Dos resquícios artísticos, a fotografia analógica Kodak PLUS-X 125, corpo-embarcação ficou como pedra fundamental que autoriza o início da jornada. Dessa maneira, o ato de carregar na cacunda a carranca é um, entre tantos, acontecimentos instaurados por davi de jesus, em que as bordas entre vida/arte se esparramam.

Muitos elementos emblemáticos que fazem parte da cultura barranqueira são convidados a participar como coautores do pensamento artístico de davi. Eles estão lá como amuletos de proteção, de coragem, de escuta do território. Conversam a todo instante com o artista, instruindo-o conforme querem ser apresentados e difundidos ao mundo externo. Assim é sua relação com as carrancas, quando elas se manifestam em desenhos e vídeos, com as redes de pescas, quando se materializam como instalações na série caxumba, e com os tamarindos, as carcaças de bichos, galhos e os demais “objetos de águas guardadas”, trazidos pelo rio.

gritos de alerta é um exemplo dessa escuta. A série, que foi iniciada no período da pandemia com o objetivo de dar um suspiro em meio ao medo, à incerteza e à instabilidade de recursos, hoje ocupa um lugar de destaque em sua produção. Milhares de carrancas desenhadas, individualmente ou em grupos, povoam o imaginário estético relacionado ao conjunto de sua obra. Com expressões de grito e de alerta, mostram-se abocanhando umas às outras, de pé, deitadas, tombadas, dançantes. Assim como conjuro, foram as responsáveis pelo início da emancipação financeira do artista, inaugurando sua obra no mercado de arte e, conforme correnteza, trazendo continuamente seu nome para a cena artística nacional. As carrancas em alerta trabalham em modo de feitiço e não querem parar.

Davi de Jesus do Nascimento, derranhos da série “gritos de alerta”, 2023, lápis marrom sobre papel hahnemühle, 14 x 14 cada. Grupo imagem topo: 152 x 23 cm; grupo imagem à esquerda: 175 x 46 cm. Fotos: Cortesia da Mitre Galeria.

Já a sua carranca escultura, que foi talhada pelo Mestre Expedito Viana Rodrigues – uma referência na região – e que atualmente protege sua casa, foi avistada recentemente (7) na obra gemer carranca naufragada, uma dupla de vídeos onde o artista faz a mediação da conversa entre carranca e rio, lava a carranca com água doce do rio em gesto de benzimento e assunta a carranca feito bicho farejador. As imagens em movimento integram a série estudos de corpo-embarcação, que segue em contínuo desenvolvimento.

Por sua vez, os tamarindos preenchem baleiros, redes, barcos e ambientes inteiros, exalando seu cheiro agridoce para além dos espaços expositivos ocupados pelo artista. Dizem que, ao se passar perto ou longe dos museus e centros de arte que já receberam obras de davi, o cheiro permanece lá, conservado e emanando a memória e espiritualidade do rio por muitos anos.

Davi de Jesus do Nascimento, fragmento de “gemer carranca naufragada”, 2’56’’, 2023, vídeo digital. Cortesia da Mitre Galeria.

Davi de Jesus do Nascimento, nutre acre, 2023, objeto de águas guardadas, baleiro giratório com tamarindos, 30 x 44 x 40 cm. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

Monstruosidade

Um corpo que é metade humano, metade escorpião, surubim, calango ou coruja. Em exorcismo de dor vemos repetidas vezes davi de costas, revelando partes de seu corpo quando se metamorfoseia em bicho. A belíssima série de Polaroids, que teve início em 2018 e segue em contínua duração, é um apontamento do corpo quando suas bordas se extrapolam, quando os parâmetros de normatividade social não se sustentam.

Ao encontrar pelo chão de Pirapora, corriqueiramente, carcaças e pedaços de bichos já em processo alargado de mumificação natural – favorecido pelo clima seco da região, que rapidamente desidratada os tecidos e preserva as características externas dos organismos –, davi experimenta outras versões de si ao costurar ou “acostumar”(8) novos corpos ao seu. O resultado clarifica a integração de sua identidade ao seu contexto de origem e, mais que isso, afirma e celebra as múltiplas existências, desde humanidades, não humanidades e seus híbridos, que dali pertencem. A série fotográfica também traz ao debate a cosmopercepção que desconsidera relações opressoras e tirânicas entre espécies, desvinculando as hierarquias ao propósito do capital e do extrativismo e ancorando aos seres vivos um ambiente natural de coparticipação e comunhão. Ou seja: lascas de magia que rememoram as intelectualidades afroindígenas que compõem toda a extensão do Rio São Francisco.

Davi de Jesus do Nascimento, Água Guardada, da série “Exorcismo de Dor”, 2021, calango lacerado acostumado e fotografias instantânea sobre papel, 47,5 x 13 cm. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

Davi de Jesus do Nascimento, Estudos de Corpo-Embarcação, 2018,  fotografias instantânea sobre papel, 22 x 65 cm. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

Redizendo desde esse lugar, somamos a outros trabalhos rituais que mesclam sua identidade, compondo-a tão fluida quanto um curso d’água. Assim ocorre no ensaio fotográfico pesca-ameaça de naufrágio da barca ou ensaio para morrer com o rio, realizado em colaboração com seu pai e irmão após um sonho do artista. Na cena, Davi pai lança a rede no rio para pescar o filho davi. E se repete no caso das fotografias pesca farta, em que davi posa ao erguer nos ombros um peixe amarelo, e porto seco azedume, quando, na proa de uma embarcação abandonada, davi se torna carranca – esta última, pelas lentes de seu irmão Bicho Carranca. Já na esfera dos experimentos de comunicabilidade entre corpos, o artista vem desenvolvendo uma série de pequenos vídeos acerca dos seus estudos do movimento, que fazem alusão ao dançar do redemoinho na terra seca9, seja em prosa direta com raízes varizes do Rio da Velhas, seja na impecável sintonia da dança com o cacarejar das galinhas da vizinhança.

Esse conjunto de obras ocupa um lugar central no debate iconográfico e teórico na contemporaneidade, ao discutirmos os transbordamentos da Teoria Queer e das teorias de monstruosidade e ecologia, ao serem atravessadas pelas localizações de raça e geografia. De modo que, ao revelar poeticamente seu mistério, de teor essencialista, o artista se insere na categoria identificada pela norma social como demoníaca, monstruosa, anormal, personificando as existências que, há séculos, são descritas como selvagens e causando, assim, respostas comuns entre medo e atração. Não à toa, as discussões sobre monstruosidade têm ganhado cada vez mais tono, em âmbito global, na tentativa de subjetivar as experiências sexo-gênero dissidentes, em especial, o corpo queer racializado e periférico.

Dando lastro ao estudo que desvela as diversas formas de vida provindas do rio, os aguamentos da série sorvedouro anunciam as entidades oriundas do barro que toca as águas mais profundas do São Francisco. O título faz referência ao fenômeno natural em que a água, muitas vezes de maneira rápida e poderosa, é absorvida ou sugada para dentro, como em um buraco, abismo ou vórtice, formando correntes subterrâneas, cavernas ou formações geológicas específicas. A ideia de absorção aqui aglutina seus três significados: impregnação, compreensão e arrebatamento.

Para algumas culturas indígenas da região e proximidades, seres do submundo cuidam do equilíbrio da terra e são os donos dos recursos naturais. Portanto, os seres medonhos retratados por davi de jesus, muitas vezes narrados em período de gestação, emergem para a superfície no intuito de serem reconhecidos através de suas histórias, vozes e odores.

Davi de Jesus do Nascimento, pesca farta, fotografia instantânea impressa, 2018. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

Davi de Jesus do Nascimento (Nascido em Pirapora, 1997) reside e trabalha em Pirapora, Minas Gerais, Brasil. Ele é um artista ribeirinho, criado às margens do Rio São Francisco – um curso d’água que constitui a essência de sua vida e prática artística. Nascido em uma família de pescadores, lavadeiras e carranqueiros (mestres da tradição de figuras de proa), Nascimento envolve-se em pinturas, desenhos, performances, vídeos, fotografias e textos, todos impregnados de uma essência espiritual. Suas expressões criativas derivam de experiências, memórias e imaginações ligadas ao seu território, comunidade e família. Através do desdobramento de novas possibilidades existenciais para elementos terrenos, ele propõe relações peculiares entre espécies e vê a metamorfose como um destino inevitável. Os cenários densos e atmosféricos de Nascimento estão envoltos em um clima sentimental e uma certa temperatura que delineiam um universo visual e semântico único.

Madeira Doce, Água Áspera exhibition, Palácio das Artes, Belo Horizonte, 2023. Foto: Cortesia da Mitre Galeria.

1. Karranca Groove é o título da canção de Marku Ribas e 5ª faixa no disco 2 do álbum Marku 50 – Batuki, Parda Pele, Atavu, 2013. Aqui, o escolhi como expressão que denota sintonia e fluidez com a carranca. Um groove é muitas vezes associado a uma sensação rítmica contagiante e cativante que faz as pessoas quererem dançar ou se mover ao ritmo da música.

2. Em conversa com o artista, em sua opinião, as barragens são os procedimentos mais danosos para a vida dos rios. Barragens em rios são estruturas construídas para represar água, criando reservatórios artificiais.

3. Pirapora, por exemplo, era destino de muitos artistas da MPB como Alceu Valença, Sá e Guarabyra, entre outros, e morada do músico barranqueiro Marku Ribas. O álbum Pirão com Peixe, de 1977, de autoria da dupla Sá e Guarabyra, foi composto em homenagem a Pirapora, com destaque para as canções Trem de Pirapora e Cinamomo.

4. O Suor da Testa Mora Dentro dos Marimbondos é a segunda exposição individual do artista, realizada no Memorial Minas Gerais Vale, entre outubro e dezembro de 2019. Com curadoria de Júlio Martins.

5. A obra Singra foi comissionada para o festival fluvial Seres-rios, em 2021. Trabalho realizado em colaboração com o pai, Davi de Jesus do Nascimento, e Caio Esgario. Para conhecer o trabalho, acessar o link: seresrios.org/davi-de-jesus-do-nascimento/

6. Ao carregar a carranca, davi carrega também a referência cultural associada à sua terra. Esse simbolismo fica evidente ao termos conhecimento de que a carranca usada em corpo-embarcação pertencia ao músico Marku Ribas e foi cedida via empréstimo de sua amiga, Lira Ribas, filha do músico barranqueiro.

7. Obra exposta em Mau da Língua, em cartaz no Museu Paranaense, Curitiba, Paraná, entre dezembro de 2023 e março de 2024.

8. Processo em que o artista cola pedaços de animais em fotografias.

9. Nessa série de trabalhos, davi faz alusão ao redemoinho a partir da frase “O Diabo na rua, no meio do redemoinho”, sua inspiração e influência direta no livro Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. A obra célebre da literatura brasileira se passa, em partes, na região do Norte de Minas Gerais, sendo a cidade Pirapora um dos pontos turísticos relacionados ao romance.

Todas as imagens do trabalho de Davi e o texto biográfico são cortesia da Mitre Galeria,  quem representa o artista desde 2021.

Para entrar em contato com eles: @mitregaleria /  www.mitregaleria.com

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