Gilberto Tomé: Suspiros Tipográficos

Em minha jornada sobre este planeta, no intervalo de tempo que me coube até aqui, algo que sempre me encanta e me faz cantar é o desenho. Sentir o desenho, não apenas vê-lo, mas vivê-lo com todo o corpo, com toda minha carapaça sensorial, faz parte de um aprendizado, um reconhecimento, uma aproximação do que julgo ser seu real e maior significado: o desenho como sinônimo de linguagem.
Logo, o que me espanta e comove, dia após noite, noite após dia, é esse desejo-desígnio de sermos vasos comunicantes, seres que compartilham suas vivências e assim constroem, através da linguagem, o ser maior que somos: o coletivo da humanidade.

Gilberto Tomé

Em tudo tem desenho.

Do risco rupestre ao dígito ex machina, corações e mentes marcam suas existências, trajetórias e passagens com grafias, sinais e símbolos. A sistematização do que chamamos escrita, cujos indícios de origem remontam a seis milênios, parece-me chocantemente recente, frente aos 200 ou 300 milhares de anos do homo sapiens. Chocam muito mais no entanto as transformações que a escrita conferiu ao percurso da humanidade, com um desenvolvimento tecnológico crescente em progressões geométricas, em curva assombrosamente ascendente.

Em nossa história mais recente, há pouco mais de cinco séculos no ocidente, o engenho humano desenvolveu os artefatos gráficos do sistema de impressão tipográfica, seguindo o princípio ancestral do relevo entintado – revelado pela mão que estampou a pedra na caverna – estabelecendo a moderna e vertiginosa difusão do conhecimento. Essencialmente, o conceito de uma superfície gravada como matriz de impressão em um processo fabril visa economia de meios, através da síntese gráfica. E esta síntese favorece o sentido de unidade, tanto visual quanto de conhecimento, informação, conteúdo. E também facilita a multiplicação desse conhecimento, potencialmente infinita.

O exercício desse desenho, dessa linguagem que chamo tipográfica, é caminho para parte de minhas inquietações, reflexões e aprendizados profissionais. Através desse sistema de impressão, movem-me volições afetivas e suas correspondentes experiências de expressão gráfica.

Relações entre a tipografia e a arquitetura fazem parte de uma visão mais ampla do desenho como linguagem.

Em 2013, editei uma pequena e singela publicação que se chamou “Mestres Tipógrafos: impressões de vida”, onde entrevistei três profissionais da área gráfica que ainda trabalhavam com impressão tipográfica na cidade de São Paulo. Através da memória oral, obtive relatos de suas biografias, sobretudo no que se refere aos ofícios que desempenhavam. A publicação, totalmente impressa por esses profissionais – assistidos pela minha presença em todo o processo, como aprendiz –, rendeu uma experiência gráfica que se constituiu em forte entendimento dos procedimentos, operações técnicas, maquinários e ferramentas da composição e impressão tipográfica, valendo como estudo de linguagem. E mais: conviver com suas memórias, não só as que saíram de suas lembranças faladas, mas as que impregnavam seus lugares de trabalho, levou-me a reconstituir certos recortes de tempo e espaço, do século XX na cidade de São Paulo. Reconhecer as dimensões do humano, do particularmente humano, depuradas nesses quase dois anos de trabalho, permitiram-me situar essas pessoas numa visada social, econômica, política, cultural, histórica. Uma percepção que se revela quando o foco sobre o exercício de uma profissão abrange a complexidade da vida e sua contínua transformação no tempo e no espaço. Observar atuais transformações requer olhar com atenção o passado e o presente igualmente. Aventar e inventar futuros é pensamento-gesto decorrente.

A publicação circulou no estreito mas crescente circuito de feiras de publicações independentes que vêm marcando a cena editorial contemporânea e através delas pude fazer contato com artistas, designers, fotógrafos, pesquisadores e outros autores que se ligavam ao tema das artes do livro. Em 2017, o coletivo soteropolitano Sociedade da Prensa, lançou uma linda publicação, “Ympressos Paraguassu”, que também reconstituía histórias da gráfica baiana a partir da cidade de Cachoeira, na região do Recôncavo. Impedido de ir ao lançamento do livro, à época, somente seis anos depois, em 2023, pude visitar essa cidade e conhecer as pessoas, os profissionais e suas gráficas, apresentados nessa pesquisa realizada por Flavio Oliveiras, Laura Castro e Thiago Ribeiro.

“Ympressos Paraguassu”, Edtóra, Sociedade da Prensa, 2017

A cidade de Cachoeira teve fundamental importância no desenvolvimento do estado da Bahia. A ocupação da região pelos portugueses, onde se localiza a cidade, às margens de um dos maiores rios baianos, o Paraguaçu, data do começo do século XVI, apenas 31 anos após a chegada de Cabral, quando começam a se instalar engenhos para plantio de cana e produção de açúcar e, mais tarde, fumo. Sendo ponto de chegada ou partida do trecho navegável do Paraguaçu até a capital, Salvador, a região era considerada porta do sertão, servindo como grande entreposto comercial, recebendo toda sorte de produtos a serem distribuídos pelo interior do estado e também expedindo a produção local fluvialmente.

Essa estratégica posição geográfica conferiu à Cachoeira enorme importância econômica por todo século XVII e XVIII, sendo a principal cidade do estado depois de Salvador. Esse destaque também ocorreu naturalmente no plano político pois movimentos de independência de Portugal encontraram ali seara fértil a ponto de se anteciparem ao grito do Ipiranga e excluírem as forças portuguesas da cidade ainda em junho de 1822. Essa notável atuação política proporcionou grandes investimentos à cidade, como a primeira ponte férrea de grandes dimensões em território brasileiro, inaugurada em 1885, ligando Cachoeira à cidade-irmã, do outro lado do rio Paraguaçu, São Felix.

Cachoeira apresenta um importante patrimônio arquitetônico, do colonial século XVII – como a Capela de N.S. da Ajuda, local de fundação do povoado, em ponto elevado da cidade – ao neoclássico eclético do XIX, incluindo também a ponte D. Pedro II, que liga Cachoeira a São Félix. Imagens superiores: Rio Paraguaçu, vista de Cachoeira a partir de São Félix. Imagem do canto superior direito: Embarcação amarela – canoa feita a partir de um único tronco de madeira. 

Desde a chegada de Dom João VI ao Brasil em 1808 e a sequente instalação da Imprensa Régia, permissões oficiais passaram a liberar a criação de estabelecimentos gráficos particulares, até então proibida – sendo o primeiro deles a atuar na cidade de Salvador, a Tipografia Silva Serva. Não demorou muito para que Cachoeira também apresentasse esses maquinários e equipamentos de impressão, servindo-se de sua proximidade com a capital e por ser porta do sertão, escoando um sem fim de impressos para dentro do estado.

Uma série de mudanças na economia brasileira (que desde o século XVII viu a mineração crescer em Minas Gerais, atraindo a mudança da capital de Salvador para Rio de Janeiro ainda no século XVIII e despertando um lento mas consistente processo de industrialização a partir de fins de XIX notadamente na região sudeste) instaurou certo declínio em Cachoeira, a partir da metade final do século XIX e por todo século XX, cenário parcialmente revertido nas últimas décadas quando novas empresas se instalaram na região. 

Os poucos estabelecimentos gráficos que ainda resistem tem se adaptado às demandas simples, na produção de impressos efêmeros, de uso cotidiano. O jornal da cidade deixou de ser impresso em tipografia na década de 1990, o que não deixa de surpreender, dada a complexidade de sua composição, que não se servia de linotipos, apenas tipos móveis.

Rama tipográfica preparada para impressão.

Penalizadas por grandes enchentes do rio Paraguaçu ao longo do século XX, Cachoeira e São Félix tiveram boa parte de seus acervos gráficos danificada, senão perdida. E a desvalorização do processo de impressão tipográfica, considerado cada vez mais anacrônico e pouco competitivo em termos comerciais frente a processos como o offset e, mais recentemente, o digital, faz com que os profissionais gráficos tenham cada vez menos trabalhos em tipografia, restringindo-a a uso muito eventual, cada vez mais raro. Os equipamentos não têm manutenção adequada ou permanecem em desuso, sofrendo ação daninha do tempo. Estão num momento crítico pois a geração de seus proprietários nasceu analógica e ainda pôde se beneficiar durante muitos anos de seu uso, mas a revolução digital foi o golpe final para selar mudanças irreversíveis na indústria e comércio gráficos, determinando sua obsolescência.

Algumas matrizes de impressão, as chamadas “chapas”, uma vez impressas, não são desmontadas e permanecem amarradas, aguardando uma oportunidade de reimpressão, possibilidade cada vez mais rara.

Contudo, o aspecto quase artesanal do processo de impressão tipográfica, que lhe confere uma qualidade gráfica particular –notadamente o pequeno relevo que marca o papel mediante a pressão feita sobre a matriz entintada –, atrai a atenção de artistas gráficos e designers, estudantes, professores e pesquisadores que identificam nessa técnica um sistema engenhoso que opera com economia de meios e com resultados bastante expressivos, além de reportar-se a uma manifestação gráfica muito popular, genuinamente brasileira: os livrinhos de cordel, que ainda hoje marcam nossa literatura e cultura visual.

Foi nessa perspectiva, buscando verificar pessoalmente o estado atual dessas gráficas nas cidades baianas de Cachoeira e São Félix, que me dirigi à região em agosto de 2023. Ali visitei duas gráficas operantes, a Gráfica Sãofelista e a Gráfica Líder, ambas trabalhando principalmente com pequenas impressoras offset da marca Multilith, mas mantendo ainda impressoras tipográficas, desde as mais simples como minervas a outras mais complexas, do tipo leque ou plano-cilíndricas, de marcas como Heidelberg e a brasileira Catu. Os elementos de composição principal como tipos móveis e ornamentos são os mais afetados pelo descaso na manutenção: muitos se encontram “empastelados”, ou seja, misturados, desorganizados, fora de suas caixas e gavetas adequadas, reforçando o cenário de abandono.

Vinhetas e clichês tipográficos Acervo Gráfica Sãofelista, Cachoeira, BA

Escadaria do cais do porto de Cachoeira, datada da primeira metade do século XIX.

Fui recebido pelos gráficos Addison e Seu Edivaldo, da Gráfica Líder, com certa surpresa. “Quem é esta pessoa que se interessa por velhas gráficas e o que quer, de fato?”, a pergunta parecia estampar-se em suas testas franzidas de sol e de dúvidas. Mas apresentando-me como colega dos amigos da Sociedade da Prensa, que anos antes ali também tinham chegado, entusiasmados com a pesquisa histórica sobre impressos baianos, a conversa fluiu melhor e logo foram contando das dificuldades do momento, agravadas pela recente pandemia do coronavírus. “Mas dá pra gente trabalhar, fazer algum tipo de impresso usando os tipos móveis?”, perguntei depois que me apresentaram a gráfica, com suas poucas dependências e equipamentos empoeirados. Eu estaria na cidade por alguns dias e queria registrá-los trabalhando, através de algumas fotos que pudessem mostrar todas as etapas da impressão tipográfica, da composição da chapa (matriz) à impressão e acabamento.

A resposta positiva, embora um tanto reticente, já me animou o suficiente para providenciar o papel na papelaria da esquina. A Gráfica Líder só dispunha de papel branco e pardo, e pensei que seria bom usar papéis coloridos como os que normalmente se utilizam na impressão dos cordéis. Por se tratar de uma única lâmina a ser impressa, optei por uma cartolina do tipo escolar, de maior gramatura. 

Seu Edivaldo e Addison mostram foto do livro “Ympressos Paraguaçu”, onde aparecem os autores e colaboradores da publicação. Partes do livro foram impressas na Gráfica Líder e na Gráfica Sãofelista.

Na manhã seguinte, já que não tínhamos nenhum estudo prévio, Addison e eu nos lançamos a vasculhar as gavetas buscando algo que pudesse ser impresso e representasse, de certa forma, o acervo tipográfico da gráfica. Optei por imprimir uma chapa já montada, composta aleatoriamente há algum tempo para reunir certos glifos e facilitar sua reorganização nas gavetas, o que não tinha acontecido até então. Além disso, fizemos uma composição rápida com alguns ornamentos e algum texto. “Tem que ter um texto, uma frase que seja”, insistia Addison. A palavra Cachoeira foi composta com um tipo elegante (cujo nome posteriormente identifiquei numa fonte digital similar, a Regional, redesenhada por um estúdio argentino, inspirada nessas fontes Old Style de final do século XIX), emoldurado verticalmente por ornamentos que me remeteram ao movimento das águas do rio Paraguaçu. Na parte de trás desse folheto, imprimiríamos com destaque os nomes dos artífices e da gráfica, utilizando variadas fontes, como a Grotesca, Futura e outra fonte cursiva.

Addison manuseando o componedor, onde se montam as palavras com seus respectivos espaços;  conjunto de variados glifos, amarrado, aguardando a distribuição nas gavetas.  Addison garimpando letras nas gavetas. Momento clássico de um chapista: à medida em que lê o texto (num copyholder improvisado) a ser composto com os tipos móveis, Addison garimpa as letras nas gavetas habilmente.

 As chapas montadas vão sendo bem amarradas, para depois serem encaixadas e travadas em uma rama tipográfica.

Permanecemos por dois dias debruçados no processo de composição e impressão – eu apenas conduzia as questões relacionadas à diagramação e definição dos tipos a serem usados etc, procurando intervir o menos possível nas sugestões dadas por Addison, acatando a maior parte delas. Impressionaram-me a rapidez e eficiência de sua montagem de chapa, os recursos e soluções diante das dificuldades que foram surgindo, sua criatividade ao lidar com aqueles materiais, ferramentas e equipamentos, revelando enorme intimidade com as operações todas e particularmente com a impressora, uma Catu.

Em sua postura profissional, em seus gestos, em suas mãos, em seu olhar reconheci que a tipografia está viva, “vivinha da silva” como dizem. Sem sinal de ocaso. Esse impresso que trago de Cachoeira atesta tudo isso.

Uma prova preliminar é feita na impressora plano-cilíndirica da marca Catu, de forma criativa: sem tinta, usando apenas uma folha de papel carbono. A rama tipográfica é preparada, inserida e fixada na impressora, recebendo duas cores de tinta que são aplicadas manual e simultanemente no cilindro de entintagem.

O exercício do ofício tipográfico situa-se entre os saberes e fazeres culturais ancestrais que ainda vivem em Cachoeira. A cidade é também referência de tradições religiosas afrobrasileiras, como a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, atuante há mais de 200 anos. Em Cachoeira, raízes e matrizes do Brasil resistem.

Os créditos do impresso final não só resumem sua história e um possível devir, mas destacam o valor da pesquisa feita pelos amigos da Sociedade da Prensa.

Gilberto Tomé é artista gráfico, formado em arquitetura e urbanismo pela FAU USP. Em seu ateliê Gráficafábrica edita seus livros artesanalmente e em seu estúdio Fonte desenvolve variados projetos gráficos. @tome.gilberto / @graficafabrica / @fontedesign_sp

Todas as fotografias foram tiradas por Gilberto Tomé durante sua viagem à Cachoeira, Bahia. 

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