Bruno Passos: Por onde começamos? (risos)
Fernando Marar: Não sei, a gente pode falar um pouco sobre como viemos parar aqui. Eu e você estamos ligados por essa coisa tão simbólica, abstrata, e que organiza a vida de todos nós que é o Tempo. Pensa que a gente começou lá atrás num estúdio de Design – você vindo do interior, eu vindo de Bauru. A grande Bauru, metrópole que abarca Marília, aquela pequena cidade muito valiosa que produziu pessoas magníficas como você. (risos) A gente pôde acompanhar nossa própria evolução, né?
BP: Para mim, o maior interesse nessa conversa é não saber para onde ela vai, nem qual é o propósito dela. Parece que esse é quase o efeito reverso para você, que gosta das coisas de um modo mais subsequente, com causa/consequência, percebo que os seus objetivos e caminhos são moldados baseados nessa lógica. Isso também ocorre para mim em alguma esfera, claro, mas eu não quero saber como, porque toda vez que entendo o que estou fazendo, isso me tira um pouco da emoção do fazer artístico e me leva para um pensamento de artesania, que é quando eu tenho muita consciência do que faço e acabo sentindo menos naturalidade nos meus movimentos.
É como se me interessasse mais ficar olhando o céu esperando um raio do que saber que às 19:52 vai cair o tal raio. Eu gosto da promessa mais do que da coisa em si, então minha relação com o Tempo é a de existir nele, sem um processo de autoconsciência.
FM: Eu acho isso incrível. Fico curioso… quando você vivia lá em Marília, você já tinha essa noção? Em que momento se deu essa percepção, de querer ver o raio e não de tentar estudá-lo?
Você sempre foi um cara muito estudioso e quis saber o porquê das coisas. Para mim essa virada é quase a mudança do pensamento pragmático do designer para o pensamento artístico que você carrega hoje.
BP: Eu acho que as coisas mais fortes da nossa vida existem sem que a gente saiba como elas existem. Você ama a sua mãe, o seu pai, antes de saber o que é a palavra amor ou o significado disso. E o problema de saber o significado das coisas, é que quando você denomina ou categoriza, você acaba por encerrar o assunto. Para mim, a nomenclatura, o símbolo, são uma espécie de encurtamento. Claro, nomear as coisas e criar símbolos para elas faz com que a gente consiga ter relações complexas com as pessoas, o que chamamos de “conversa”, (risos). Mas, ao mesmo tempo, as nomenclaturas e suas especificidades apequenam as emoções.
Pense numa receita, se você ler essa receita hoje ou daqui 50 anos é muito provável que sua percepção sobre ela seja praticamente a mesma. Agora pense em fazer isso com uma poesia, eu garanto que ela terá uma carga quase inédita se lida com este intervalo de tempo. Isso ocorre porque a poesia é um arranjo menos utilitário, mais amplo.
Bruno Passos (esquerda) e Fernando Marar (direita) em conversa para Art Dialgues, Camburi, São Paulo, 2023. Cortesia dos artistas.
FM: Entendo, talvez a poesia seja a umas das poucas, se não a única forma de usar a palavra sem dar fim a alguma coisa, é isso que você está tentando fazer com a pintura.
BP: É. Pra mim, a poesia conversa muito com o viver artístico.
FM: Quando eu dou nome a alguma coisa, talvez esse seja o fim dela, no mais amplo sentido. A primeira coisa que nossos pais fazem com a gente é nos dar um nome. A gente não nasce com capacidade de linguagem inata. Depois que você aprende a pensar linguísticamente, isso é parte indissociável do nosso existir. Talvez no seu trabalho já seja diferente, sua expressão é visual, não usa as palavras em si. Você acha que essa sua relação de querer ver o raio mais do que entender o raio por exemplo, sempre foi natural ou isso foi um esforço dentro da sua busca artística?
BP: Um esforço. Quando se cria um símbolo ou uma linguagem, você consegue se apropriar disso até certo ponto, esticar os significados, é um poder e tanto. Então, quando eu comecei, a minha ideia foi exatamente instrumentalizar, tornar pragmático todo o meu desenvolvimento. “- Por que o volume acontece, a temperatura, o claro, o escuro e a saturação?”
Queria entender qual era o modo de domar essas coisas. Para se aprimorar, você precisa começar pequeno e enjaulado, ou seja, criar símbolos e orbitar em volta desses símbolos, porque aí você tem um ponto de referência pra navegar. E é só a partir do ponto de referência que é possível se desenvolver.
Cada vez que eu dominava uma ferramenta artística, cada vez que eu entendia como criar uma luz ou um ponto de fuga, eu podia parar de pensar nisso e o fazer se tornava mais orgânico. E por se tornar mais orgânico, notei que às vezes eu quebrava algumas regras, foi onde se tornou possível criar coisas “não domadas”, realmente potentes e pessoais.
FM: Pensando em tudo o que a gente conversou ao longo da vida… Não dá para dizer que você está indo para um caminho abstrato de pintura, mas existe algo disso no processo. Você vem falando já há algum tempo sobre a Dança, e acho que hoje mais cedo no café eu pude compreender isso, que pintar o raio sem saber quando ele cai (e ter uma forma muito rápida de reagir àquilo) é quase como seu corpo dançando para uma música. O abstrato está adensado num milissegundo, se ele não vier no Tempo certo, tudo desmorona. Demora um tempo pra gente decodificar o sentimento, transformá-lo em palavra, mas quanto mais a gente exercita, mais rápida é essa transmutação. Há pouco tempo retomei a escrita e eu brinco que escrever é “gravar o tempo no espaço”, então comecei a desenvolver em um caderno essa escrita propositiva, onde eu basicamente escrevo onde eu estou, o dia e a hora -, foi aí que compreendi o poder da intenção.
Você foi desse caminho de dominar a técnica, que era uma forma de “estudar o raio”, para um caminho novo, de querer sentir o raio, né? Hoje você tem a agilidade e as ferramentas necessárias para registrar o momento em que esse raio bater, traduzindo isso de maneira tão sensível como em uma dança, imprimindo esse lapso, que é sua emoção condensada.
Bruno Passos em seu estúdio em São Paulo.
Cortesia do artista.
Bruno Passos, detalhe da pintura “Leandro”, Acrílica sobre tela, 130 cm x 80 cm, 2023. Cortesia do artista.
BP: Este é exatamente o grande ponto que me fez não querer ser um ilustrador – sem demérito à profissão. Eu não quero descrever, eu quero mostrar, sabe? Para mim, você mostrar a coisa vai ser sempre mais potente do que descrevê-la.
FM: A gente nunca sabe onde essas conversas vão nos levar. E a gente chegou num ponto que eu queria tocar, que é o Tempo como medida. Você demorava quatro meses para fazer uma tela, às vezes dois meses. Houve artistas que levaram dez anos pra terminar um quadro. Agora eu penso na fotografia, ela faz isso num instante. Principalmente a analógica, que é uma imagem gravada fisicamente em um papel, o que é lindo porque você também entende a poética de um fotógrafo quando consegue capturar aquele instante e o quanto ele treinou para poder entender a composição e captar esses instantes.
Antes que o raio caia, o olho dele está tão preparado para traduzir exatamente como ele gostaria de enxergar aquilo, então, não importa mais se é figurativo ou abstrato, né? O que importa é conseguir exprimir aquela sensação. Ao falar em Tempo como medida, o que você está tentando fazer é “acabar” com o Tempo e projetar aquilo de maneira mais permanente. A fotografia faz isso magistralmente bem. Neste sentido, uma foto analógica por exemplo, permite com uma capacidade absurdamente rápida, registrar tudo de uma maneira muito clara, realista.
BP: Eu penso que se tenho uma foto que capturou um grande momento e esse grande momento foi o nosso “raio”, ela está ali descrevendo o momento com precisão científica, mas quando meus olhos estavam vendo aquele raio, a sensação daquilo extrapolou a visualidade cartesiana. Ou seja, quando eu olhei aquilo, os ângulos do raio eram mais agudos no meu sentimento, a claridade foi mais forte, é como se a foto, de certo modo, não abarcasse tudo que senti ao ver o raio.
FM: É porque a foto geralmente tem a lente, né? A pintura transporta essa função da lente para sua mão.
BP: Exato. Uma diferença latente que é mais comum de ver na boa pintura do que na boa fotografia, é uma visão estética. Quando eu falo Estética, me refiro à origem etimológica da palavra, que vem do grego e que significa “compreensão do mundo através dos sentidos”.
A pintura permite uma visão estética da cena, enquanto a fotografia permite uma visão mais descritiva da cena. Pela maleabilidade da Pintura, eu consigo que ela expresse o que é mais real para mim em termos de sentimentos, enquanto na foto é muito comum você mostrar a alguém e já emendar “mas ao vivo era outra coisa” Por que isso ocorre? Porque a gente está falando de Estética, de compreensão do mundo pelos sentidos.
FM: Interessante, e quando a gente passa do realismo para o abstrato, acho que existem algumas instâncias ainda mais complexas. De maneira rasa, existe o abstrato que as pessoas enxergam outras coisas e se torna quase uma figuração para aquela pessoa, existe a mistura entre figurativo e abstrato, que às vezes você também recorre em alguns momentos, e existe um caminho mais realista, onde você começou. Acho que quase todos os grandes pintores começaram por ali e se dedicaram muito à técnica, se você pegar o Picasso ou até o próprio Paul Klee… E, então, parece surgir esse objetivo de querer meio que pintar como uma criança.
Eu hoje vejo isso como um desejo de voltar a um período em que havia um entendimento diferente de linguagem, um lugar embrionário onde talvez esteja a essência do artista, mas com habilidades já desenvolvidas. Essa busca artística de querer caminhar no tempo, de querer olhar para a frente e encontrar as próprias costas. De escrever o futuro revisitando o passado pelo presente. E isso diz muito sobre o Tempo. Pensando no tempo como unidade, produzir uma pintura é uma espécie de congelamento do Tempo, sem se importar quanto tempo isso leva. Quando você começa a pintar o abstrato, a unidade se torna mais o aqui, o agora. O abstrato às vezes é mais difícil de interpretar, mas ele me parece muito mais fiel do que o realismo pela perspectiva de quem busca expressar a fração de um instante. Eu estou tentando buscar essas transições e, como designer, o Tempo para mim é cronograma, para me ajudar a preparar projetos e me organizar. Em alguns momentos você também faz isso, quando vai ter uma exposição, por exemplo. Mas eu percebo que você está cada vez mais próximo dos instantes. Como é para você lidar com essas duas medidas de Tempo?
Pablo Picasso, The Artist’s Mother, 1896. Pastel em papel, 52.7 cm x 41.5 cm.
Bruno Passos, Azul Maré, Acrílica sobre tela, 150 x 100 cm, 2023.
Cortesia do artista.
Bruno Passos, Cupido, Acrílica sobre tela, 130 x 80 cm, 2023.
Cortesia do artista.
BP: Acho que o Tempo se tornou um agente social para mim, mais do que qualquer coisa. É a minha ligação com o outro, é uma medida social. Ele não é uma medida de fatos, mas o veículo no qual eu fluo para encontrar correntes (que são as pessoas) com quem eu quero confluir.
Quando a gente pensa em Tempo, às vezes a gente pensa na gente, em como eu achava isso ou aquilo, mas para mim é irrelevante se minha tarde dura seis anos ou se minha tarde dura dez minutos, se isso aconteceu ontem ou uma década atrás. Analisar a vida desse modo é só uma masturbação. O que importa mesmo é que o Tempo existe somente no ponto de intersecção, no momento que esse meu fluxo se cruza com o fluxo de outras pessoas, isso só pode acontecer se tivermos alguns denominadores comuns, como a linguagem e, claro, o Tempo Social. Eu não posso viver num fuso muito diferente de você se eu quiser me relacionar com você, porque somos animais e dormimos num certo horário, comemos num certo horário e pensamos melhor aqui ou acolá. Então, para mim, tudo relacionado ao Tempo vem do outro, meu interesse em saber que chegaram as férias é porque eu sei que nesse espaço-tempo chamado “férias” é onde vou encontrar algumas pessoas queridas. O Tempo é um ponto de encontro mais do que uma medida de passagem de alguma coisa. Pensando no Tempo como unidade, o que eu quero é exatamente me unir a alguém. O Tempo é uma linha de comunhão.
FM: Tratar sobre o tempo a partir do idioma têm essas ambiguidades. “- Unidade.” Do meu lado ainda designer e pragmático pensando o tempo como unidade, tipo caixinhas de 30 minutos que eu tenho que usar para otimizar as coisas. Eu sempre tive muito medo da morte e a palavra Tempo começou a me aterrorizar, sabe? Porque o Tempo acaba… A gente fala que o Tempo é abstrato e infinito, mas o nosso Tempo aqui é finito. E acho que parte da minha angústia, depois de anos de terapia e de vários processos que aconteceram na minha vida, culmina inclusive em estarmos aqui hoje conversando como parte desse projeto de diálogos artísticos. Quando fui convidado pela Anita (Goes), eu fiquei: pera aí, você me enxerga como artista? E, na verdade, talvez o meu trabalho sobre a saudade seja o que me levou a querer falar sobre o Tempo. Porque a palavra saudade exprime Tempo. E me angustia. (risos)
BP: O que te incomoda nessa noção de o Tempo acabar? Qual é o problema para você?
FM: Acho que é sobre a Existência. E acho que esse foi o ponto pelo qual agora eu redescobri a escrita.
BP: Por que?
FM: Porque se o Tempo é essa coisa que abarca tudo, o grande guarda-chuva, o Tempo é uma representação de Deus, né? E a gente encara o Tempo onde? No calendário, mas o calendário não parece uma boa tradução de Tempo.
BP: Mas por isso a pluralidade de significados é tão legal. Porque essa dificuldade de definição faz com que as coisas se tornem indomáveis.
FM: Esse é o ponto que venho questionando. A gente usa as palavras para formular uma frase, mas no modo corriqueiro de quem domina a fala, não nos atemos ao real significado das palavras que a compõem. Esta conversa, por exemplo, usa muitas palavras para discutir apenas uma delas, o Tempo. E palavras como Tempo tem um forte impacto sobre a maneira como nos organizamos enquanto sociedade. Aí eu olho para o calendário e penso, por que o mês começa no dia 01 e acaba no dia 30? Por que está sempre acabando? A gente não poderia falar que o Tempo está crescendo? O mês está acabando… é a morte! Pelo menos por uma perspectiva muito particular, o Tempo está sempre acabando. Um deadline. Eu tenho tentado escrever porque sentia que precisava existir de alguma forma. Não me importa se as pessoas vão ler o que escrevo no futuro ou não, mas se houver qualquer convergência com alguém que está passando pelos mesmos pensamentos e emoções, isso já vai ser muito satisfatório.
BP: Você está se unindo no tempo com outra pessoa. Então concorda que o Tempo é uma unidade social.
FM: Sim, e tenho conseguido entender o lado do Design que pode pender para a Arte também. Sei que é totalmente diferente da sua abordagem, mas quando eu desenvolvo um trabalho mais pessoal, com uma abordagem mais artística, eu procuro de alguma forma abolir com o pragmatismo do Design, mas confesso que é um esforço tremendo. Percebi que existem coisas que eu sinto que podem ressoar no outro e vice-versa. Quando eu cheguei na fundação do Donald Judd, em Nova York, me deparei com o mobiliário. A ideia dele fazer a mesa, respeitando a relação do espaço e a proporção da janela, por exemplo… Aquilo ressoou em mim. Em certa parte me deparei com a perspectiva da qual eu também vejo o mundo. E isso me tocou. Acho que foi aí que eu entendi um pouco da diferença entre Design e Arte, de certo modo. Uma coisa é eu fazer um dicionário sobre Saudade, outra coisa é eu colar a palavra saudade em qualquer lugar da cidade e as pessoas pararem ali do nada, porque elas se relacionam com aquilo.
Fundação Judd Foundation, Nova York.
BP: O Design tende a buscar definições, né?
FM: Exatamente, mas Saudade é algo muito amplo, pode ser esse lugar que a gente está agora, pode ser você, pode ser uma maçã, um cheiro que para mim é ruim e pra você é ótimo. O único jeito que eu encontrei de “pintar” a Saudade foi demonstrar ela representada pelas sete letras em sequência que a compõe e que as pessoas que sabem ler essa imagem conseguem projetar a saudade delas ali.
BP: Isso aconteceu quando você se dispôs a deixar que a “coisa” continuasse no outro. Essa é, para mim, a grande diferença entre Design e Arte. No Design, você tem a intenção de que aquela pessoa, através do design criado, chegue ao coeficiente comum que você espera, é uma coisa super controladora no sentido da função. Isso permite com que você tenha uma agudeza muito grande, mas ao mesmo tempo uma amplitude menor. E muitas vezes, para ser muito profundo é preciso abrir mão da amplitude de alcance. A Arte muitas vezes tem profundidade, mas não tem tanto alcance. Ao invés de atingir 10.000 pessoas, uma pintura talvez atinge só duas, mas essas duas serão atingidas de maneira muito impactante. Por outro lado, pense num copo, ele vai ter que servir o propósito ergonômico para todas essas 10.000 pessoas, algumas mais outras menos. O Design me parece ter essa necessidade de futurologia, ele precisa prever qual reação vai causar e como serão as consequências disso.
FM: A base do Design se resume em duas perguntas para mim: por que e como. Quando eu falo sobre saudade, não carrego tanto essas perguntas. Isso veio pra mim em uma viagem que fiz para visitar o Igor, um amigo que não via há algum tempo. Ele foi um dos meus últimos amigos da época da faculdade a deixar o Brasil e eu senti uma ruptura enorme do nosso Tempo-Espaço enquanto grupo de amigos, senti que as coisas mudaram. Aquela sensação de que talvez eu nunca mais tivesse algo de volta me causou uma dor, mas durante os dias que fiquei por lá, eu comecei a encontrar pessoas que não tinham essa palavra no vocabulário.
Ela fala muito sobre o Tempo, um Tempo muito carinhoso, de lembranças. O Tempo também tá nesse rol da lembrança. Saudade exprime o Tempo como linguagem. Foi quando surgiu essa vontade de explicar essa palavra para pessoas que não falam a nossa língua e daí surgiu toda essa curiosidade sobre linguagem, e que me trouxe à palavra mor: Tempo e como a gente lida com ele. Por que a gente ainda quer guardar tantas coisas? Registrar o lugar em que estou, a data e a hora, e depois voltar a esse papel em outra data e local…tudo isso é para falar, “- olha, eu existi, eu passei por aqui!”. Isso começou a melhorar minha relação com a finitude.
E você, pensando no seu trabalho, o quanto a pintura te ajuda a se relacionar com a vida?
Fernando Marar, Saudade, serigrafia, 66 x 96 cm cada poster. Brooklyn, Nova York, 2016. Cortesia do artista.
Fernando Marar, Saudade, serigrafia, 66 x 96 cm cada poster. Unibes Cultural, São Paulo, 2017. Cortesia do artista.
Fernando Marar, Saudade, serigrafia, 66 x 96 cm cada poster. Centro de São Paulo. Cortesia do artista.
BP: Não me ajuda em nada (risos). Talvez um dos grandes motivos seja que, cada vez mais, eu sou só a chuva que chove. A chuva não escolhe chover, acontece que chove. E a beleza dela, em parte, é essa naturalidade, que talvez seja a coisa mais próxima que a gente tem da Verdade. Então, quando eu tento só liberar coisas e não pensar sobre isso, eu caminho para um despropósito, uma espontaneidade.
Para mim, é quase um modo de existir em forma bruta. E essa bruteza é a sinceridade. Quando paro de buscar “soluções” na pintura, ali é o lugar onde eu posso apenas ser quem eu sou, menos reativo.
Eu não sei se isso é bom ou ruim, eu apenas recebi um chamamento para fazer o que faço. Se você perguntasse ao Pelé por que ele jogava tão bem… Se era por que ele amava aquilo ou por que aquilo trazia respostas, talvez ele dissesse que chutou tanto porque pôde chutar.
O ato mais potente é aquele que acontece sem uma intencionalidade prévia. A pintura é, para mim, muito parecida com o ato de respirar e mais parecido ainda com o fato de ter fome. Eu apenas preciso pintar como eu preciso comer. Às vezes a comida vai estar ótima, às vezes horrível. Calhou de eu ter condições e privilégios que me fizeram chegar a um lugar onde eu pudesse ser quem eu sou, né? Então é isso. Eu não tenho uma aspiração macro de ser melhor. Eu quero ser melhor, mas não é o meu propósito.
FM: Como é sua relação com o fim da existência?
BP: É ruim. A única coisa que eu penso é que – dada a vastidão do planeta e todos os arranjos atômicos e químicos que existem – há uma raridade incrível em estar vivo, consciente e operante,. Então eu sou um diamante mágico – todo ser humano é. Existir e ter consciência disso e pensar que essa consciência vai se esfarelar é uma pena. Mas eu não consigo nem achar errado, porque eu me acho mais sortudo do que azarado de existir.
FM: Uma coisa que a escrita tem me ajudado a fazer é trazer essa consciência. Você começa a escrever e percebe o quão difícil é exprimir as coisas. O “existir” que buscamos existia muito antes da linguagem atual, quando ainda éramos primitivos. Eu acredito que a partir do momento em que a gente se estabelece em uma terra, a gente vê o Tempo passar de outra maneira, porque a gente não “caminha” mais sobre o tempo como os nômades por exemplo.
Os humanos, assim como todos os animais, foram feitos para caminhar. A vida só existe no movimento, mas o movimento cansa e o movimento uma hora desgasta. E aí é que acho que o Tempo enquanto linguagem nos influencia e faz surgir nossos medos. Se não tivéssemos toda essa compreensão da linguagem, talvez até a própria finitude seria diferente. Enfim, nossa relação com o Tempo realmente tem ficado cada vez mais complexa e talvez um dos grandes problemas hoje seja a ansiedade gerada. Você se prende ao passado ou ao futuro… e quanta ansiedade a gente já teve com relação a esse futuro que nem sabemos se existirá né?
BP: Embora pareça uma coisa muito ruim, talvez a ansiedade seja a síntese, a fisicalidade do Tempo, é você existir em um momento enquanto projeta outro. Uma síntese que junta o presente ao futuro, baseado em experiências passadas. Talvez a gente não esteja preparado ou não tenha a capacidade cognitiva para tanto, para essa existência simultânea, e essa incapacidade pode causar dor. Então talvez a ansiedade seja um modo de comprovar uma limitação. Não sei de onde isso veio (risos).
FM: Pra mim, tenho que ansiedade vem do fato de não saber se eu vou estar vivo ou não. Mas o tempo é algo muito particular para cada indivíduo, né? Eu digo que meu pai foi cedo, mas ele desenvolveu uma extensa pesquisa e viveu intensamente por anos. A gente está sempre tentando parametrizar o tempo para a sociedade funcionar, para termos uma falsa sensação de controle… de alguma forma esse controle não me parece natural.
Bruno Passos em seu ateliê, São Paulo. 2023. Foto: Camila Simielli.
Bruno Passos, Ateliê em Jundiaí. 2022. Preparação da obra “Pequeno Assassinato”. Cortesia do artista.
Cortesia do artista.
BP: Você acha que alguém conseguiu tirar alguma coisa útil desta nossa conversa?
FM: Acho que uma discussão sobre o Tempo pode ir pra tantos lugares… Talvez em uma hora de conversa, a gente só tenha mostrado que essa palavra não se resume a cinco letras e que carrega muita complexidade. A gente poderia ter tentado conversar de maneira linear, se limitando para poder chegar em algum lugar super objetivo, mas tivemos a oportunidade de tentar encontrar uma síntese mais natural, por este intercâmbio de pontos de vista entre arte e design.
BP: Então depois de todo esse papo, se você fosse sintetizar o que é Tempo para você, o que diria?
FM: Que o Tempo não existe. Existe um espaço que faz com que a gente tenha a necessidade de se justificar através do Tempo.
BP: O Tempo é uma justificativa?
FM: Tenho pra mim que o Tempo é uma unidade criada para nos organizarmos enquanto sociedade. O calendário é uma representação visual do tempo, e cumpre esta função. O relógio igualmente. Já a borracha é quase antagônica ao tempo, apresentando a possibilidade de fazer algo que a princípio não é fisicamente possível em relação ao tempo. Eu dei risada sozinho hoje mais cedo porque quis apagar uma linha e lembrei que isso não acontece na vida real, né? O que aconteceu, aconteceu. O John Baldessari fez uma borracha em que está estampada a palavra “wrong”. E não existe teoricamente esta possibilidade Tempo. Ele simplesmente passa.
BP: Você acha, então, que a gente poderia dizer que a saudade é uma borracha poética?
FM: A saudade é uma borracha que não apaga, eu acho. (risos) E para você? Se você pudesse resumir: o que é o Tempo?
BP: É uma tentativa de reunião. De juntar uma coisa, pessoa, sentimento. É a vontade de colar um pedaço no outro.
FM: O Tempo é uma cola?
BP: Uma tentativa de cola. Uma força que busca aproximar. Pensar sobre o Tempo futuro nada mais é do que uma tentativa de colar o que eu sou hoje com o que eu vou ser amanhã. Então, para mim, o Tempo é uma tentativa de integrar, de unificar tudo. É esse adesivo mágico.
FM: Perfeito. Pensando à frente, se um dia a gente olhar pra trás e encontrar esse diálogo aqui, como o Bruno do futuro veria o que o Bruno pensa hoje?
BP: Eu tenderia a achar (porque sou pretensioso) que eu estava certo e que o Tempo é essa cola, essa desculpa para eu conseguir ter uma conversa direta e profunda com alguém que eu gosto. Mas, ao mesmo tempo, como eu vou ser no futuro depende de tanta coisa além do meu controle que simplesmente o assunto não me interessa. Infelizmente ou felizmente, o que eu tenho está aqui, neste instante.
FM: O que eu posso te dizer é que 15 anos atrás eu não projetava estar exatamente onde a gente está hoje, mas eu tinha uma aposta sobre um norte e esse norte não era diferente de onde estamos agora. Então, eu ainda continuo planejando e continuo uma pessoa hiper ansiosa por isso. (risos)
Acho que tenho tentado entender o Tempo para que isso me ajude a estar mais no presente. Tenho procurado a Arte para quebrar um pouco do meu pragmatismo lógico como designer, para tentar a lidar melhor com a minha própria existência. Acho que a Arte hoje vem tomando um grande espaço em mim, mas o design tem uma importância gigantesca na minha vida. Porque o pragmatismo foi a maneira que encontrei para construir as coisas de maneira controlada. Eu nunca vou falar para uma pessoa “deixar fluir” sem compreender o seu momento. Se eu tivesse deixado fluir quando falavam isso para mim, talvez a gente não estivesse aqui agora. A ansiedade, até certo grau, foi muito importante para eu me mover até o ponto de encontrar uma certa segurança. E isso me permite hoje, deixar fluir muito mais do que em qualquer outro momento da minha vida.
BP: Entendo, acho que o não pensar só vem depois do pensar demais. A gente fala como se a criação instrumentalizada fosse um defeito, mas ela é o que fundamenta a criação orgânica. É essencial ter um alicerce para que você consiga construir a organicidade daquilo que você sonhou de início.
Por mais que seja atraente falar de uma criação orgânica e de uma criação instrumental, é indissociável para uma criação potente que você tenha as duas coisas acontecendo ao mesmo tempo em estágios diferentes. O grande lance que talvez seja uma chave diferente para isso tudo é entender o Tempo como uma conciliação de momentos, se isso bastar, talvez importe menos para a gente se o ideal vai ser melhor ou pior do que o que temos hoje, um caminho mais harmonioso para aceitar a existência possível.
FM: Obrigado, Bruno. Eu amo estar ao seu lado. Que a gente se encontre mais no tempo e também no espaço.
BP: Eu que agradeço. Está sendo uma ótima aventura.
Para saber mais sobre Bruno Passos: @brunopassosbr
Imagem herói: Bruno Marar, rascunho, Camburi, 2023.