Quando cheguei em NY, no final do mês de abril, logo senti que precisava compor uma espécie de “casa” em torno de mim, com meus hábitos, os objetos, as pequenas escolhas que fazia; depois de um pouco mais de dois anos aprendendo a ser pai – meu primeiro filho nasceu em 2022 e agora tem 2 anos – estava sozinho, muito longe de casa e inteiramente mergulhado em meu trabalho. Estar longe da família, da casa que nos aninhamos e do dia-a-dia foi muito desafiador desde o início. Por isso senti que gostaria de, aos poucos, construir no meu novo estúdio, nos trabalhos e até mesmo dentro de mim, um tempo próprio e mais lento, uma atmosfera de calma e concentração, um ambiente propício para trabalhar toda essa experiência de solidão, distância e novidade.
Nas pinturas, isso se deu através de camadas e camadas de tinta, raspagens, pentimentos; muitas horas de pintura e uma vontade de que emanasse daí uma luz esquisita, mas reconfortante, feita com um pouco de afeto e estranheza. Queria que as pessoas se relacionassem com as pinturas de maneira afetiva, que as pinturas pudessem oferecer um pouco de calma, sabor e silêncio.
Esse desejo constantemente se encontrava em atrito com uma cidade muito maluca, intensa e múltipla como NY, com milhares de universos e culturas dentro dela, com um tempo acelerado e por vezes até agressivo. Não vi esse atrito, no entanto, como algo negativo, pelo contrário. Fui entendendo ao longo da residência que era o choque entre os tempos, desejos e expectativas que poderia gerar algo interessante. Passei muitas e muitas horas dentro do ateliê, num gesto de proteção e mergulho, mas quando em contato com a cidade pude observar que essas experiências reverberavam nos trabalhos de forma inusitada; voltar ao ateliê todo dia e tensionar as vivências na cidade foi muito potente.
Nunca tenho um projeto definido para minhas pinturas. Elas partem de uma memória ou desejo de cor e atmosfera, da vontade de construir uma superfície específica, um “método” de início, uma forma que vejo e imagino, de alguma pintura minha ou de outros artistas, e por aí vai. Há muitas maneiras de começar e muitos caminhos possíveis, mas de toda forma, tudo acontece quando começo a pintar de fato. Aos poucos cada pintura toma seu caminho próprio, e o início leve e fresco de um trabalho muitas vezes precisa ser perdido, desafiado, abandonado. Há aí também um atrito entre o que imaginava e o que é de fato; assuntos e temas muitas vezes mudam, e não são o centro do trabalho, orbitam fantasmagoricamente como ecos, memórias, passado ou futuro. Frequentemente a percepção do assunto dos trabalhos é um tanto aberta e aquilo que a pintura é como assunto, tema ou referência é inerente a como ela foi feita – sua materialidade; existe uma indistinção entre “o que” e “como”.
Junto com os novos assuntos que surgiram durante a residência, também fui descobrindo outras maneiras de construir a superfície, aprofundando desejos antigos de experimentar, pesquisar, me arriscar. Essas formas orgânicas que lembram frutas – circulares, ovais e um pouco irregulares, já vinham aparecendo em São Paulo, mas em NY, sua relação com os pequenos “pontos” foi me interessando – marcas diminutas que aparecem em quase todos os trabalhos e por vezes tenho chamado de “sementes” – e como essa relação me apontava para ideias de fertilidade, plantio, sistemas vivos.
Desde muito pequeno, estava constantemente andando por trilhas e cavernas na região Sudoeste do Brasil com minha mãe, no meio da Mata Atlântica. Ela, agente pública militante da conservação ambiental, trabalhava em um parque estadual da Fundação Florestal do Estado de São Paulo onde existem muitos quilômetros de mata nativa preservada ( Parque Estadual Intervales, Ribeirão Grande – SP) e eu e minha família sempre estávamos por lá. Minha mãe já não trabalha mais no parque, mas seguimos indo, de vez em quando, até hoje.
Também meu pai, veterinário, me colocava desde pequeno em contato com os cachorros, gatos, suas raças diversas, suas brincadeiras, cirurgias, anatomias. Eu vivia em seu consultório, vendo seu cuidado com os animais e seus tutores. A relação com a natureza – fauna, flora, comportamento, cultura – sempre foi assunto e experiência direta. Creio que isso me marcou profundamente, de uma forma meio espiritual, meio estética. Tenho dentro de mim um lugar de devoção para essas memórias e uma convicção de que nossa natureza é um santuário e uma fonte muito importante de toda a poética que tento empregar em meus trabalhos. Ainda assim, para mim sempre foi – e é – muito difícil de associar minha prática artística com o desejo profundo de abordar/pesquisar/mergulhar nesse tema, pois gostaria que meu trabalho também fosse de deslocamento, curiosidade, dúvida, vulnerabilidade, des-sentido, ilógica.
Ao final de 2022 comecei a usar algumas sementes como uma espécie de dados, runas ou búzios – ritual/prática divinatória da tradição do Candomblé onde os sacerdotes iniciados jogam alguns búzios ( cowrie shell), conchas de um pequeno molusco, em uma mesa preparada para se responder dúvidas e questões relacionadas à vida pessoal ou religiosa. Jogava as sementes nas telas em branco e marcava suas posições quase aleatórias e as pinturas começavam a partir dessas marcas.
Iniciei essa prática depois de voltar de um jogo de búzios e perceber que havia nos jogos oraculares uma relação entre acaso e precisão: uma pedra ou concha atirados ao acaso dão respostas mais ou menos precisas, sugerem uma maneira de olhar, revelam algo que não se via. A partir dessa pesquisa foram surgindo essas formas mais arredondadas, que eram ecos da mesa onde se jogam os búzios, um espaço onde se concentra um processo, um corpo circular fechado que também lembrava imagens microscópicas de células e simultaneamente corpos estelares, além de frutos, sementes e folhas.
Em NY, produzi alguns poucos trabalhos com esse “método” do jogo, mas as formas ovais que lembram frutos se relacionavam diretamente com o tema das sementes, e podiam ainda propor mais composições e possibilidades dentro dos assuntos e formas de fazer. Realizei alguns trabalhos que associavam a posição das marcas – “sementes” – agora colocadas a partir de ritmos musicais e claves de instrumentos, como por exemplo o tamborim – instrumento de percussão usado no Samba – e isso me possibilitou conectar também a prática de pintura à minha prática musical.
Com exceção de alguns poucos trabalhos, a maioria deles tem essas marcas, pontos, pequenos gestos. Chamo de sementes, mas também gosto de dizer que eles tencionam o espaço, assim como um corpo em uma rede, um som no silêncio, um acento em uma palavra. Gosto de pensar que são as sementes próprias de um ecossistema da pintura, que tem sua natureza própria, suas próprias leis naturais; as camadas de tinta que constroem atmosferas são também parte dessa mesma natureza, uma terra para as sementes. Dessa forma podem fazer alusão ao “mundo natural”, mas têm autonomia, uma realidade própria.
Algo muito interessante que aconteceu foi conseguir dar títulos a todas as obras, no último segundo da residência, ao catalogá-las e embalá-las. Num gesto rápido e um tanto despretensioso fui associando os trabalhos a lembranças da cidade, lugares, objetos, reflexões. Alguns trabalhos intitulei em espanhol, por entender que Nova York é uma cidade quase bilíngue, o que diz muito sobre sua estrutura social e política. Na condição de estrangeiro, pude ver que em parte é uma cidade habitada, construída e sustentada por nós, “estrangeiros”. Queria, como brasileiro, ver a cultura, a língua, a fala, como materiais integrantes da minha prática, mesmo que isso se desse pelos meios da pintura, ou em títulos como “Blanquito”, “Má Suerte”, “Sueño”, “Solito”. Optei por não traduzir os títulos, dando a elas um título único, e buscando também criar interesse na sonoridade de cada palavra.
Sou um artista representado pela Galeria Estação desde 2022, quando fiz minha primeira exposição individual intitulada Deni Lantz: Pinturas, com curadoria e texto de Ivo Mesquita. Desde antes de ser representado pela Galeria, já frequentava as exposições e admirava os artistas representados, e todo o trabalho de Vilma Eid com a arte brasileira. Sem dúvida é de uma importância enorme no Brasil e no mundo. Para mim é muito significativo estar perto dos trabalhos de artistas como Véio, Madalena dos Santos Reinbolt, Neves Torres, José Antonio da Silva, entre tantos outros. Para mim, como referência, são da mesma importância que artistas do norte global já consagrados. O trabalho de Vilma, justamente, tem apontado nos últimos anos na direção de fazer essa ponte entre a produção dos artistas ditos “populares” brasileiros e a produção contemporânea brasileira e internacional.
Durante a residência refleti muito sobre essa relação entre minhas referências e origens culturais mais profundas como brasileiro e a experiência de estar em contato com a cidade de NY, sua cultura e realidade complexa, me conectando com o trabalho da Galeria e seus propósitos, e entendi o peso da nossa produção brasileira ainda mais intensamente. Foi graças ao apoio constante da Galeria Estação e sua equipe que pude ter essa experiência tão rica e transformadora.
Para saber mais sobre Deni acesse: @deni.lantz__ // galeriaestacao.com.br//pt-br/artist/102/deni-lantz
Fotos: Camilla Loreta