Anna Costa e Silva

Anna Costa e Silva trabalha com situações construídas entre pessoas, criando espaços de vulnerabilidade, diálogo e troca. Sua prática investiga traumas e fantasias coletivas e individuais — como gritamos, como sussurramos — com foco no potencial transformador do encontro humano. Seus projetos se desdobram nas interseções entre artes visuais, cinema, performance e práticas relacionais, assumindo a forma de instalações, filmes, sons, objetos ou situações efêmeras.
É graduada em Cinema e mestre em Artes Visuais pela School of Visual Arts, Nova York. Recebeu prêmios como o FOCO Bradesco ArtRio, a Bolsa de Produção Artística da Funarte e o American Austrian Foundation Prize for Fine Arts. Foi indicada ao Prêmio PIPA (2018 e 2020) e finalista do Prêmio Marcantonio Vilaça. Em 2025, realiza residência artística na Delfina Foundation, em Londres. Costa e Silva já apresentou exposições individuais em instituições como o Centro Cultural Hélio Oiticica, Sesc Copacabana, Centro Cultural São Paulo e Galeria Superfície, além de integrar coletivas na Casa França Brasil, Parque Lage, A Gentil Carioca, Oi Futuro, Casa Triângulo, BienalSur (Buenos Aires), Art in Odd Places (Nova York) e Contemporary Art Center (Lituânia), entre outras. Participou da 13ª Bienal do Mercosul (2022), realizou residências no Terremoto Mx, Pivô Pesquisa e Setor Público, e recebeu o Franklin Furnace Grant para apresentar uma nova performance no Grace Exhibition Space, em Nova York. Atua como professora na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) e no Ateliê Fotô (SP), dirigiu a série documental Olhar (Arte1) e é representada pela Galeria Superfície, em São Paulo. Suas obras integram importantes coleções públicas e privadas, entre elas o Museu de Arte do Rio e o Instituto Moreira Salles.

Por Favor, Leia para que Eu Descanse em Paz: Sobre Misoginia e Loucura

Em 2018, recebi um telefonema da minha amiga e colaboradora Nanda Félix. Sua avó havia acabado de falecer e ela estava vivendo o delicado processo de revisitar seus pertences e decidir o que ficaria e o que iria embora. Nanda e eu estávamos trabalhando juntas em uma das peças que eu dirigia na época, Púrpura, na qual mulheres artistas da performance tinham encontros individuais com participantes do público, contando histórias sobre suas cicatrizes invisíveis escondidas em lugares da cidade. “Minha avó deixou algo que é para nós”, Nanda me disse ao telefone. Eu não tinha conhecido sua avó e fiquei intrigada e comovida com aquela ligação. Era o início de um longo capítulo da minha vida, que me levaria a muitos lugares e pessoas que eu jamais poderia imaginar naquele momento.

Um envelope antigo, com um título manuscrito: “Por favor, leia para que eu descanse em paz.” Abaixo, também escrito à mão: “Papéis muito íntimos, desculpem se deixo algum de meus filhos infeliz. A única coisa de que tenho certeza é que nunca conseguirei me manter viva sem amor.” Dentro do envelope, um laudo psicológico organizava a saúde mental dessa mulher em tópicos, além de uma série de cartas e confissões a um padre. Nas cartas, ela compartilhava seus desejos, angústias e reflexões sobre a solidão em meio a um casamento abusivo e a busca por amor e por seu próprio espaço. M.C. foi internada em um hospital psiquiátrico nos anos 1950 com depressão pós-parto e passou por diversos tratamentos invasivos, incluindo eletrochoques. Foi afastada dos filhos e parou de trabalhar.

Quando Nanda abriu o envelope e começou a ler o laudo, esperando encontrar respostas para tantas perguntas sobre a identidade da avó – a maioria delas apenas sussurradas em reuniões familiares – o que encontrou foram palavras genéricas, frequentemente usadas para manipular e silenciar mulheres: “agressiva”, “desajustada”, “egocêntrica”, “humor oscilante”, “dificuldade de relacionamento com o sexo oposto.” Esse laudo poderia ser sobre ela mesma ou sobre qualquer mulher em 2018, pois falava da condição feminina em uma sociedade patriarcal. As cartas, por outro lado, eram confissões íntimas sobre formas sutis de abuso e a perda de identidade em um casamento tradicional – como ela dedicou toda a vida ao marido e aos filhos sem receber nada em troca e como sua solidão só cresceu ao longo dos anos. Nanda percebeu que a história de sua avó não dizia respeito apenas a ela como indivíduo, mas também à experiência coletiva de ser silenciada como mulher. O pedido de M.C., “Leia para que eu descanse em paz”, poderia revelar outras histórias não contadas. Você já foi chamada de louca? Esse foi o tema da nossa primeira conversa naquele telefonema, abrindo caminho para muitas outras ao longo dos anos.

Sou uma artista de encontros. Tenho dedicado os últimos quinze anos a processos de escuta que envolvem entrar no espaço de vulnerabilidade do outro e encontrar onde nossas vulnerabilidades se encontram. Ao longo da vida, fui chamada de louca em várias situações e convivi com a ansiedade e a depressão. Como tantas outras mulheres, sempre estive nessa linha tênue, com a ideia da loucura me assombrando como um fantasma – especialmente em momentos desafiadores ou quando tentava abrir caminho por trilhas desconhecidas. Por outro lado, a loucura também foi um refúgio e me ajudou a ver e nomear violências que estavam acontecendo, tanto no nível individual quanto no sistêmico. A experiência de M.C. falava diretamente comigo. Nosso interesse, porém, não estava apenas em refletir sobre a ideia da loucura como forma de manipular e silenciar mulheres, mas principalmente em abrir um campo de discussão coletiva. Como essa experiência se relaciona com a vida de outras mulheres hoje?

Levar até às últimas consequências o pedido de M.C. – “Leia para que eu descanse em paz”. Fazer com que suas palavras escondidas dentro do envelope fossem lidas pelo maior número possível de mulheres e, além disso, ir mais longe. Como essa experiência, materializada em um envelope deixado para ser aberto após sua morte, poderia servir como microfone aberto, ou amplificador, para que mulheres falassem sobre aquilo que gostariam de tornar público para descansar em paz – ainda em vida? O que precisa ser dito? Como abrir um espaço de afeto para essa escuta coletiva? Como cada experiência de opressão é singular, mas ao mesmo tempo atravessada por aspectos sistêmicos que tocam todas essas histórias? De que formas uma sociedade patriarcal enlouquece as mulheres desde o início? Como pensar o feminismo interseccional quando falamos de saúde mental?

Você já foi chamada de louca? foi o título que Nanda e eu demos a uma convocatória aberta nas ruas e nas redes sociais, que resultou em um círculo de conversas íntimas com 70 mulheres de várias partes do Brasil. Essas primeiras conversas desdobraram-se em um encontro coletivo no Rio de Janeiro com 25 mulheres, no qual as participantes liam juntas o laudo de M.C. e algumas de suas cartas, comentando e relacionando com experiências de silenciamento que também haviam vivido. Além disso, pedimos a cada mulher que trouxesse um objeto que gostaria de tornar público para descansar em paz em vida e contasse sua história a partir desse objeto. Foi uma experiência muito comovente para todas as presentes – tanto participantes quanto nossa equipe, também composta apenas por mulheres. Estávamos sentadas em círculo, passando o envelope de mão em mão, falando segredos – alguns deles pela primeira vez – e refletindo juntas sobre a experiência de ser chamada de louca.

Esse encontro foi filmado e resultou em uma videoinstalação de 2 canais, além de uma coleção de cianotipias, textos e objetos físicos. O primeiro filme se concentra mais nas histórias individuais das participantes, com uma coreografia de imagens e gestos e o processamento das cianotipias de cada mulher – imagens que emergem da água – além de uma visita ao Hospital Nise da Silveira, onde até hoje são preservadas memórias de internações, incluindo instrumentos. A história dessas mulheres é colocada em diálogo com a história da avó de Nanda em uma montagem poética e onírica, e seu pedido se transforma em alto-falante para gritos de dor e de força, sobrepondo tempos e espaços.

No segundo vídeo, vemos um coro de todas as mulheres lendo o laudo em voz alta. Aos poucos, esse coro se desfaz, à medida que cada uma começa a enfatizar palavras do documento e trazer outras, ligadas às próprias histórias – palavras que já haviam sido usadas como formas de opressão e manipulação. A experiência chega a um ápice de raiva, liberação de emoções intensas e gritos, que depois se transformam, espontaneamente, em um canto harmônico de alívio.

A instalação se completa com uma coleção de objetos escolhidos pelas mulheres como representantes do que gostariam de tornar público para descansar em paz – um santuário dos silêncios. Além disso, uma cartografia de imagens ligadas à construção da história de M.C. e à violência psiquiátrica: representações femininas em testes TAT, palavras destacadas do laudo, escritos nas paredes de quartos femininos no Hospital Nise da Silveira e testes de Rorschach. Ao entrar no espaço expositivo, o visitante é imerso em vozes e histórias de mulheres.

Por Favor, Leia para que Eu Descanse em Paz foi exibido na 13ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, e em mostra individual no SESC Copacabana, no Rio de Janeiro, em 2024. A versão longa do vídeo também foi exibida em festivais ao redor do mundo, como o Festival do Rio e a Society for Visual Anthropology, em Toronto, Canadá. Todos os eventos da exposição também contaram com novos círculos de conversas e atividades entre mulheres, refletindo sobre processos de loucura e silenciamento.

Em 2025, fui artista residente na Delfina Foundation, em Londres, como parte de uma temporada temática sobre Arte, Tecnologia e Saúde Mental. Passei três meses no inverno londrino junto a residentes de várias partes do mundo, cujas práticas inspiradoras também tocavam nas interseções desses três temas. Durante a residência, aprofundei minha pesquisa sobre mulheres e loucura, desta vez com foco no som e na palavra falada. Na Delfina, conduzi um salão sobre o projeto Por Favor, Leia para que Eu Descanse em Paz, em uma dinâmica circular de fala, na qual mulheres foram convidadas a ler algumas cartas de M.C., escrever palavras que já foram usadas contra elas como forma de opressão e compartilhar suas experiências. Foi uma vivência profundamente comovente e, mais uma vez, conseguimos ir além da discussão teórica sobre o tema, trazendo nossas próprias histórias e compartilhando vulnerabilidades. O salão foi mediado por Jamille Pinheiro Dias.

Durante minha estadia em Londres, também participei do evento Creative Practice and Feminism, na University of London, apresentando o projeto em diálogo com a ideia de tradução feminista e da criação de um espaço de amplificação de vozes femininas, em interlocução com outras iniciativas interdisciplinares. Apresentar o trabalho nesses dois contextos diferentes e escutar as experiências de mulheres no exterior foi muito poderoso para mim. Sinto que, a cada vez que esse envelope é aberto, novas camadas vêm à tona – não apenas em termos de ideias, mas também nas dinâmicas entre as mulheres presentes. Falar de nossas experiências, olhar nos olhos umas das outras, entender a importância de simplesmente estar ali, engajada em escutar enquanto outra mulher fala, e saber que cuidado e afeto são práticas, não apenas ideias.

Por Favor Leiam para que Eu Descanse em Paz – Anna Costa e Silva e Nanda Félix 2022-2024

Para saber mais sobre Anna Costa e Silva @annacostaesilva 

Fotos: Cortesia da artista & Fabian Alvarez.

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