repara – nasceu ali
algo
que nunca antes existiu.
Eu ainda não sabia, mas meu primeiro ateliê foi meu quarto de infância.
Em frente à minha cama tinha uma escrivaninha pequena de madeira cercada por estantes repletas de livros, alguns brinquedos, e mais um tanto de outros livros. Livros que eu mesma não tinha escolhido. Livros pesados de capa dura, livros que me diziam de lugares que eu haveria de conhecer; alguns deste mundo, outros não. Uma passagem secreta. Do lado de fora uma árvore, ao longe um pássaro, o mundo.
Antes mesmo de aprender a ler, abria alguns daqueles livros, que ainda eram objetos de promessa, e deixava registros nas páginas em branco. Mensagens para o meu eu futuro: um cachorro e suas muitas pernas, um pássaro arrancando flores de um jardim, uma menina e sua sombrinha recolhida, espanto no olhar.
Hoje, manuseando os livros do passado ainda consigo encontrar algumas dessas mensagens.
“A Mulher que Matou os Peixes”, de Clarice Lispector, foi um dos livros que mais me ofereceram alento. Um livro para a infância podia, e deveria, abordar violência e morte. As ilustrações em nanquim de Carlos Scliar em gesto rápido com pincel me diziam que nem sempre as cores são imprescindíveis para o olhar da criança, que a linha é uma linguagem própria do desenho. E que o desenho e a escrita podem, e devem brotar das entranhas.
Enquanto escutava música no rádio criava histórias na parte de trás de formulários contínuos que meu pai trazia do trabalho. Aqueles, de informática, com perfurações na lateral, e códigos desconhecidos e agora inúteis ao meu pai. Virava do avesso, desprezava os códigos assim como desprezava os lápis de cor. Gostava das linhas desenhadas por canetas, gostava de desenhar palavras. Não parecia haver um território separado entre escrita e desenho.
Então posso dizer que carrego na mala da infância a construção do ateliê. Em todos os espaços que ocupei, onde muitas vezes improvisei um canto para desenhar, começava assim: minha cama, uma mesa, uma estante com livros. O desenho como linguagem. Do lado de fora uma árvore, ao longe um pássaro, o mundo.
Ao desembarcar na minha mais recente vida nas montanhas e abrir essa mala, encontro a árvore e o pássaro. Encontro o mundo. Encontro os materiais primordiais: nanquim, aquarela, lápis grafite, pincéis, papel. Encontro miudezas tricotadas pelas mãos da minha bisavó: roupinhas para bonecas, uma tartaruga, uma xícara e um pires. Talvez a origem do meu amor pelas miudezas e pelo fazer com as mãos venha dela. Gaston Bachelard disse, “a miniatura é uma das moradas da grandeza”.
E claro, encontro livros, muitos deles. Livros pesados de capa dura, livros escolhidos por mim. Entre caminhadas lentas porque não há espaço para a pressa – a natureza tem um tempo todo dela – retomei alguns estudos e a escrita, ainda a passos lentos mas em confluência com o desenho.
E claro, encontro livros, muitos deles. Livros pesados de capa dura, livros escolhidos por mim. Entre caminhadas lentas porque não há espaço para a pressa – a natureza tem um tempo todo dela – retomei alguns estudos e a escrita, ainda a passos lentos mas em confluência com o desenho. Hoje penso o desenho e a escrita como uma linguagem única enquanto trabalho nos livros ilustrados de minha autoria. É um território denso, onde escrita e desenho se revezam, sem uma ordem hierárquica ou planejada. Assim como as chuvas fortes que irrompem na distância, o desenho se liberta aos poucos. Reconstruo o meu ateliê, um eterno retorno às infâncias. Muitas infâncias.
Infâncias minhas, emprestadas e inventadas. Infâncias sonhadas.
Desde a infância, desenha e cria narrativas, sempre sabendo que essa seria sua profissão. Seu trabalho já foi exposto em diversas cidades no Brasil, Europa e Estados Unidos, além de ter sido selecionado para importantes Residências Artísticas. Suas ilustrações receberam destaque em diversas publicações nacionais e internacionais, incluindo a revista Juxtapoz Art & Culture e a revista da ópera de Munique. Ao longo de sua carreira, ilustrou dezenas de livros, alguns dos quais foram premiados com distinções importantes, como o Prêmio Jabuti, e integraram seleções de destaque.
Recentemente, estreou como escritora, tendo alguns de seus textos publicados nas antologias Contágios, da editora portuguesa Visgarolho, e Esquizoestórias – Experimentos com Literatura e Esquizoanálise, da Editora Fábrica de Cânones.
Com mais de 20 anos de trajetória, Thais nasceu em São Paulo, mas já morou em diversos lugares. Em 2020, mudou-se para uma pequena cidade na Serra da Mantiqueira, onde se dedica à criação de seus próprios livros ilustrados, observa os pássaros e, quando a neblina permite, a lua.
You can find out more about Thais Beltrame at: @thaisbeltrame // thaisbeltrame.com
Photos B&W: Anita Goes. Other images: Courtesy of the artist.