Bruno Baptistelli: Então você comprou o livro da Neusa Santos Souza. Essa semana eu ia te falar o seguinte: que gosto disso que você faz. Você alimenta o intelecto. Esse é seu trabalho, né? Eu acho muito interessante, porque… bem agora também é uma situação atípica em ser pai. É correria e mudanças na vida. Minha, da Carol da Rosa.
Mas eu estava falando com a Carol, pensando na pandemia, foi um momento que eu li bastante coisas e coincidentemente agora eu tô escrevendo um texto para um museu dos Estados Unidos, o Art Institute of Chicago. É um museu importante de lá e tem sido bom, uma nova experiência.
Você já condensa suas idéias em textos, né? Inclusive esse texto que você fez sobre a minha exposição individual na Galeria Luisa Strina, que não teve sua visita presencial, mas que a “visitou” a partir de registros de foto e vídeo. E bem, você já acompanha meu trabalho faz tempo e desde o bebaprafrente, já sabe também da importância que a gente dava ao registro naquele momento.
Eu continuei dando atenção ao trabalho do registro. Porque eu vejo a arte muito também como isso, né?! Um registro dessa minha passagem na Terra.
Acho que já até te falei que eu sempre pensei que minha loucura era um pouco assim: “nossa, e se acaba o mundo, a humanidade, e uma nova civilização encontra um objeto que eu produzi e que não está na ordem do utilitário”. Porque assim como você pega e fala: – Ah tá, isso era uma caneca. Era dessa forma que essa civilização passada tomava líquidos, ou sei lá, comia sólidos. Tem toda essa ideia da ferramenta, né? Mas o que dizer do objeto não utilitário? Enfim, na verdade, até me veio mais coisas enquanto eu falava.
Vinicius Costa: Aham.
BB: Mas nós mesmos me interessa muito. A gente conversa. Até outra coisa que me veio na cabeça; essa semana estava num jantar na casa de um amigo e colecionador, e tinha uma artista presente que já conhece a Carol, minha esposa, há um tempo. Ela perguntou sobre a Carol, eu respondi que estava bem. Aí ela perguntou da Rosa. E foi interessante porque eu fui mostrar um vídeo pra ela, um registro que eu tinha feito da Rosa, e eu percebi que eu quase não virei a tela para ela inicialmente. Porque, na verdade, eu estava querendo rever esse momento em que a Rosa está começando a caminhar, balbuciar as coisas, sabe? E acho que eu falei alguma coisa de linguagem. Coincidentemente, esse colecionador tem o trabalho Linguagem que você conhece (as telas) NEGRO, PRETO.
Esse texto para o Instituto de Chicago parte um pouco disso, eu também trago outras questões e de repente, não sei se vai surgir na conversa, mas ela perguntou se eu tinha lido sobre a noção de espelho no Lacan, e se eu tinha lido Lacan. Eu falei “olha, não li, mas eu tenho um grande amigo que é um estudioso de Lacan”. Então ela começou a falar um pouco sobre linguagem e pensei que talvez eu gostaria de saber mais, ouvir um pouco sobre esse lugar da linguagem. O modo como você vê linguagem ou Lacan e como isso te balizou. Porque você tem esse estudo há quinze anos, para mais.
VC: Eu entrei na faculdade muito curioso por Freud, apesar de não ter lido tanta coisa sobre a obra dele. Eu não tinha noção das diferenças. Para mim, eu achava que a psicologia era Freud. Durante esse período descubro a fenomenologia, a comportamental… É curioso. Eu tive meu momento de gostar de Freud. Recusei Freud por dois anos. Foi com Lacan que voltei a me interessar por Freud. E hoje vejo o Freud de outra perspectiva.
BB: E quando que rola isso?
VC: Eu fui para Argentina decidido a estudar Lacan em 2008-2009. Então isso faz, mais ou menos quinze anos atrás.
BB: Você foi para a Argentina, pelo Lacan? Porque eu brinco muito também, que eu sempre viajei por amor, né? (risos) Foi assim que eu saí do país pela primeira vez.
VC: (risos) Às vezes um pouco de ódio também, né? Mas faz parte. (risos) Tem dias que o amor e o ódio estão muito próximos assim, enfim. Mas é, eu acho que eu tenho essa coisa. Você é testemunha, né? Tem essa coisa muito constante da psicanálise na minha vida. E cada vez mais eu vou me aproximando da ideia de uma psicanálise como política também. Não só no consultório, mas muitas vezes conversando com as pessoas que eu acabei de conhecer, ou mesmo nós assim, num bar (risos). Me perguntam: mas não te cansa? Você quer falar de trabalho?
BB: Era para ser um momento de descontração (risos)
VC: Isso (risos). É diferente de atender alguém em consultório. Realmente, atender alguém é um trabalho, mas trazer o inconsciente para o debate político é para mim, outra esfera no sentido de…
BB: Existir no cotidiano.
VC: Exatamente. Eu acho que a gente está muito longe ainda de ter uma política que possa incluir o inconsciente. E justamente tem a ver com essa coisa do espelho que a sua amiga traz, no sentido de que a gente…
BB: Desculpa, te interrompendo para enxergar o espelho. “De incluir o inconsciente no dia a dia”. Você diz no…eu posso falar no consciente?
VC: No cotidiano. Aliás, é daí que surge o inconsciente para o Freud. Tem um texto dele muito notável, que chama Psicopatologia da vida cotidiana (1901), que ele fala das formações do inconsciente. Tem duas coisas muito marcantes no Freud: o primeiro é a linguagem. Ele vai passando de uma questão, de uma transmissão hereditária para uma transmissão de lei. E essa lei não se faz sem linguagem. Talvez esse seja o primeiro ponto para falar da linguagem. Existe uma relação da linguagem com a lei. Não a lei jurídica, moral, do certo ou errado. Mas também não é sem isso que essa lei se faz. É uma lei da linguagem. Lacan vai falar de lei de linguagem, no sentido de que tem uma forma de você se constituir pela linguagem, da qual você leva consigo uma lei, né? Então essa lei é colocada no sujeito de forma alienante.
BB: Uhum. Tá.
VC: E essa alienação só consegue se efetivar a partir de um outro, e aí estamos no campo do pequeno outro. O Lacan diferencia o ‘pequeno outro’ e o ‘Grande Outro’. Cada coisa que eu estou falando aqui a gente poderia abrir muito (risos)
BB: Mas resumamos… (risos)
VC: Vamos começar por aqui para ver onde dá! (risos)
Bruno Baptistelli, Linguagem, 2015 – Impressão offset em papel montado em chassis de madeira, díptico. 42 x 59 cm cada. Foto: Gui Gomes.
BB: Eu reconheço algumas coisas dessas que você está se referindo. Mas acho que a cada momento que você fala, e que nós vamos conversando sobre, vai abrindo outras interpretações para mim. Por isso gosto tanto das nossas conversas, e é por isso que te citei, voltando lá, aquela artista que fala do Lacan, é por isso também que quando eu recebi o convite da Anita (Goes) para participar na revista, pensei em você. Acho que são as conversas que mais me interessam na vida, mesmo. Não só de hoje, né? A gente já tem uma troca de muitos anos, mas é sempre muito enriquecedor conversar com você. E até porque você tem essa aproximação, na fala, que eu me vejo próximo. A gente vai ver esse teste, do que vai sair para ser transcrito e como isso vai rebater no mundo (risos).
Mas bem, voltando. Você está abrindo, falando de coisas pontualmente, assim eu entendo. E tem a possibilidade de abrir para inúmeras conversas, porque eu imagino que esse campo que você está, vai cavando, cavando né? É um campo conceitual muito interessante. Mas enfim, vai lá, você estava falando…
VC: A nossa própria proximidade, ela própria, é um exemplo do espelho. Tem algo aqui que pode estar operando inconscientemente há anos e que a gente se identifica. Coisas que eu posso atribuir ao Bruno, sua relação com as artes. Pois por um lado você também me enriquece com a arte. Foi um campo que eu já namorei bem de leve assim, bordejei, né? Muito distante comparado a você e aos artistas que estão há um tempo nisso, mas isso ainda me interessa. Sempre pela questão do objeto. Já te falei sobre isso. A questão da relação do artista com seu objeto, a série do artista, pra mim tem uma coisa muito próxima com a psicanálise, inclusive até mais próxima do que muitas escolas de psicologia, como aquelas que eu citei e que havia conhecido quando entrei na faculdade. Mas eu falava sobre o ‘pequeno outro’ e o ‘Grande Outro’ para tocar na questão do espelho e no fato de que quando a gente vai aprender a falar e fazer a aquisição da linguagem, isso não se dá sem um ‘pequeno outro’. Que nada mais é do que um outro qualquer e que está próximo de mim. Aquele que está próximo de mim, na maioria das vezes figuras maternas e paternas, ou aqueles que cunham essas funções vão transmitir com a linguagem seus trejeitos; é um espelho mesmo. Essa ideia de espelho, a hipótese lacaniana, que a gente testemunha na clínica e nas psicoses – apontando para o livro de Neusa Santos Souza – é que primeiro o eu é um outro. Primeiro, para a criança, ela se baliza com a imagem do outro e conforme ela se baliza nessa imagem, dessa pessoa que ela depende visceralmente, vitalmente, para se alimentar, para ter calor e da qual ela ainda não consegue equiparar a linguagem. Nessa impossibilidade de corresponder pela via da linguagem, ela balbucia, ela chora. Enquanto ela vai calibrando a linguagem dela para o outro, ela já se inscreveu num campo especular. Inconscientemente, junto com a linguagem, também adquire os trejeitos, as formas da pessoa…da qual depende para sobreviver.
BB: Já se alienou.
VC: Isso, já se alienou. Então, para a psicanálise, o eu é um outro. O eu é um objeto que opera a partir de um sujeito do inconsciente. Eu e sujeito são dois elementos, digamos, da gramática psicanalítica lacaniana, que não se coincidem. O eu é muito mais o indivíduo.
BB: Uhum
VC: Que ao pé da letra, “indivíduo” é aquele que não se divide. O “sujeito”, ele vai se dividir. E o estágio do espelho nos ajuda a pensar uma das formas de falar desse sujeito dividido, daria para irmos por muitos aspectos. Um deles é pensar também no sujeito como aquilo que me separa de você. Mas ao mesmo tempo em que eu me aproximo de você para obter uma espécie de reconhecimento. Quem seria eu e as minhas ideias sem ninguém para me ouvir? Isso faz uma espécie de movimento de atração por você. Mas a minha necessidade pulsional inconsciente, jamais reconhecida, me afasta. Então esse sujeito do inconsciente opera num entre. Por isso que eu falei brincando: “muito amor e ódio”. Porque tudo aquilo que a gente se dedica e bota nossas vísceras, vai dar em ódio. Tá junto. A gente enxerga nas sessões, essas ambivalências operando. E a gente tenta justamente operar em cima dessa ambivalência. Penso, será que para o artista, a insatisfação da última obra pode ser algo disso? Não sei. Arrisco dizer que todo artista quer a próxima obra, está sempre ali, querendo a próxima, a próxima, a próxima. E é aí que eu acho que a gente pode pensar uma política do inconsciente no sentido de que o capitalismo se apropria disso. O capitalismo se apropria no sentido de que a última não é a boa que você quer, é insatisfeita. Você precisa de mais! Você precisa de mais, de mais, de mais, de mais. O capitalismo não inventa isso, ele se apropria dessa forma de usar essa condição pulsional…
BB: humana
VC: humana, enfiando a…
BB: como forma de lucro.
VC: …enfiando produtos. Mais um, mais um, mais um, mais um… Por isso que o artista sério é aquele que leva em conta a série. Ele vai saber o valor entre uma obra e outra. Ele vai voltar nele mesmo. Ou então que ele não se transforme só na promessa do próximo produto. Mas tudo isso acaba acontecendo porque tem uma lógica que não é de ninguém…
BB: Você disse, “leva em conta a série”. Você tá chamando de série esse trabalho no tempo?
VC: Sim, trabalho no tempo.
BB: Tá! Não uma série, tipo esse trabalho é uma edição, é uma série. Entendi.
Bruno Baptistelli – Vistas da exposição ‘For a While’ – Artkartell projectspace, 2017. Fotos: Sári Ember.
VC: Então, como as obras de um intelectual ou de um escritor ou o desenho de uma criança, aí está a linguagem. Só para a gente começar de novo. O espelho tem um pouco disso. E a linguagem é esse modo que eu vou alienar o outro também. Ele vai poder falar de si numa linguagem que não é dele. E só assim poderá ser, numa linguagem que a princípio não lhe pertence. A gente fala muito de racismo estrutural, por exemplo. Isso é um despertar para esse lugar do ‘(Grande) Outro’.
BB: Sim, sim!
VC: Aí tem uma política do inconsciente, eu acho.
BB: Ah, tá.
VC: O estrutural é o inconsciente!
BB: Sim, Uhum. Eu falo muito pra você também disso: como eu acho muito importante o papel da psicanálise para mudanças reais no mundo. E de maneira objetiva ou não, o momento até que a gente ou se conhece ou se aproxima, a gente nunca se define o primeiro momento de encontro. A gente lembra de um que era numa cobertura lá e tal, uma festa de alguém da tal faculdade que você fez e…
VC: Você me ajudou a pensar que as artes precisam de bula. Não me esqueço isso, o dia em que você me falou de “arte com bula”
BB: Acho que você trouxe isso…
VC: Que era bem a minha crítica naquela época. Isso é interessante, você muda meu olhar, você muda meu espelho para arte. Porque no começo eu falava, “se precisa ter esse texto não é arte”. Acho que a arte tem que ser a coisa que impacte! Sem bulas! É o que achava naquela época, podemos dizer, era uma coisa na qual me alienava.
BB: Sim, que ative outras, que faça…
VC: Que faça a pessoa chegar no lugar. Mas você me deu uma noção de arte que também já está incluída, né? Então é isso, num primeiro momento eu tenho a síntese do que eu sou. Eu encontro você, que quebra meu espelho. O espelho tem que ser quebrado, essa é a ideia na psicanálise, o espelho serve para ser quebrado constantemente. A gente padece de espelhos sólidos. Espelhos muito cristalinos, muito claros, muito transparentes, é um problema. Isso padece porque a nossa energia, e eu falo de energia pulsional, ela precisa destruir alguma coisa, né?
BB: Sim.
VC: Destruir-se. E acho que uma boa cultura é aquela que provém possibilidades da gente se destruir simbolicamente.
BB: Interessante você falou, cristalino, claro, que é um lugar que eu tenho pensado. E um dos trabalhos dessa exposição que você escreveu o texto, se chamava, quer dizer se chama, porque o trabalho existe, não na exposição, mas continua no mundo. Chama Linguagem Escura. E tem me interessado esse lugar que vem até um pouco de umas leituras sobre o conceito de opacidade do Glissant. Mas eu ia falar também sobre esse nosso encontro. Por que eu ia falar disso?
Modelo Óptico de Lacan – Espelho
Ah, porque é naquele momento também que eu começo a ouvir sobre subjetividade. Você está falando sobre consciente, sujeito, subjetividade me veio à cabeça. Eu não vou lembrar exatamente como você falou, mas essa questão de estruturar, né?
VC: O inconsciente é a estrutura.
BB: É, o inconsciente é a estrutura. É muito interessante a gente falar, bom, eu acho um avanço de certa forma esses assuntos estarem mais presentes. Mas um pouco demorado também, não sei. Talvez seja porque hoje eu tenha mais recursos, palavras, mas ao mesmo tempo eu gosto de preservar muito o meu lugar como artista, que para mim, se dá no pensamento, e depois mostrar no mundo. Então, sei lá, fiz essa exposição: as pessoas entram e vão falando coisas, ou veem a exposição e vão falando coisas. E para mim é aí que acontece um movimento, está na ordem da arte. Como já disse, eu gosto de preservar no sentido de que não quero ter que afirmar isso por palavra escrita ou falada. Por exemplo, me interessa muito falar com você, e isso vai virar um texto, uma coisa escrita. Mas não me vejo muito parando para fazer isso, sabe?
VC: Faz sentido. A psicanálise tem uma ideia de texto muito próxima do têxtil.
BB: Tecer?
VC: Tecer, isso. No sentido de que podemos pegar o discurso de cada analisando e produzir uma espécie de continuidade. Podemos dizer, aquilo é a história que alienou esse sujeito. No outro. Essa história tem pontos significantes que o pega, que o marca, como os pontos de um tecido, dentre tantos significantes dessa história tem aqueles que pegam mais aquele sujeito. Por isso é possível ter dois irmãos muito diferentes na mesma família. Ou então fatos contingenciais, por exemplo, um dia o pai ou a mãe, ou aquele que cuida, viajou, um irmão foi e o outro ficou, ou então acabou a água bem na hora do irmão mais novo tomar banho. Tem vários eventos que acontecem que vão marcando a história do sujeito. Então a gente pode fazer uma espécie de tecido têxtil do texto de cada um. E a tendência de uma análise é poder enxugar um pouco isso, justamente no sentido de que tem algo ali muito cristalino em alguns lugares, do qual o eu, ou melhor, o sujeito não consegue aparecer. O eu fica muito forte, do tipo “eu sou o que sou e ponto final”, sabe? Quando a pessoa fala, “não, porque eu sou muito assim”, a pessoa fala isso uma, duas, quatro vezes, e aí de repente você vê que daqui cinco anos de análise, aquilo já não é tão mais assim.
BB: Aham, sim.
VC: Até que a pessoa fala algo como “eu sou assim, mas quer saber? teve uma vez que aí”…
BB: (Risos)
VC: (risos) você vai vendo então que tem furos nesse tecido. No fim, esse tecido é mais uma trança, é mais uma trama. Você dá um zoom tão grande no tecido que você pode ver que ele precisa de um buraco para poder se entrelaçar.
BB: Sim.
Bruno Baptistelli – Exposição individual “4.000 d.C.” – Galeria Luisa Strina. Cortesia: Edouard Fraipont.
Linguagem Escura, 2022-2023, tinta acrílica, carvão, linha e cabelo, 200 x 270 cm. Foto: Edouard Fraipont.
Imagem à esquerda: Sem Título (Pedites), 2023, resina e cobre banhados a ouro 18k, Ed.3 + 2 PA / imagem à direita: Sem Título (Manus), 2023, resina e cobre banhados a ouro 18k, Ed.3 + 2 PA . Foto: Edouard Fraipont.
VC: A análise visa um pouco esse enxugamento. Chama a atenção que a gente demorou para se dar conta disso, e aí Beba (apelido do Bruno), eu acho que a resistência é um fator muito importante que existe desde Freud. O sujeito em análise, resiste a se desfazer desses pontos mais cristalinos porque ao mesmo tempo que padece disso, ele precisa disso. Freud chamava de ganhos secundários do sintoma. Falando bem por cima assim, um exemplo bem clichê, a criança fica doente e não vai na escola. Daria para dar mil exemplos. Tem sempre algo do sintoma de cada um que está presente também nesses ganhos secundários. A identidade da pessoa está ali, a história da família está ali, o sofrimento daquilo que faz ela ficar conectada ao pai, à mãe ou quem cuidou dela, está ali. Inconsciente, na estrutura. Tem muita coisa ali que se ela tiver que abrir mão, vai ter que abrir mão também do que a constituiu… do que a alienou! Então tem um…
BB: Tem um medo.
VC: Sim, um medo. Por isso a gente resiste. Esse é o inconsciente. O medo é um sinal possível desse inconsciente.
BB: O Freud é meio a linguagem popular.
VC: Exato. O Freud diferenciava medo e angústia. Eu reconheço o medo. Eu tenho um referente consciente, medo de barata.
BB: Saquei.
VC: Medo da inflação econômica, por exemplo. Só que a angústia, o Lacan vai dizer, é o afeto que não mente porque ele não tem representante. E é esse estado daquele que não se representa que a política da psicanálise tenta tocar.
BB: Que era o que você estava falando anteriormente. Você gosta de trazer esse debate no bar.
VC: Grande desafio, com sua impossibilidade, já que a política é feita de representantes.
BB: Sim, você denomina, você dá nome.
VC: Aponte um político que vai na TV e promete: “Olha gente, eu vou tentar mudar o país. Mas é difícil, né? Você sabe que não se trata apenas de mim”. Não, no horário eleitoral já é um discurso super cristalino: “Eu vou fazer isso, fazer aquilo”. Ao mesmo tempo é o que a gente precisa. Não vai dar para votar em alguém que mostra dúvida. Um político que mostra seu medo.
BB: E ninguém consegue se convencer se não dermos, no linguajar popular, nome aos bois. Então tem essa repetição…
VC: Só que isso cria boiada (risos).
BB: Isso, e aí tem esse ganho secundário.
VC: Eu implico com isso. Isso é que é o louco da política. Para mim, essa não é a política inconsciente, a política que eu elejo um representante e o responsabilizo.
BB: Não. Exato.
Texto de Hélio Menezes – Um trabalho, um texto: organização Daniel de Paula, Germano Dushá e Leeward Wang.
VC: A gente confunde representação com coisa, e é aí que entra a linguagem. Por isso que lá no começo, voltando em várias coisas que eu abri; a linguagem como lei. Porque ela opera a partir de uma lei também de funcionalidade. Eu falei lá atrás, né? O Freud tinha duas coisas que foram se transformando ao longo da obra dele. Primeiro, cada vez menos o biológico se tornou predominante, possibilitando o lugar do simbólico. O Édipo interessa Freud e aqueles que criticam, eu diria que realmente não leram Freud ou Lacan. Porque o Édipo nada tem a ver com o pai e a mãe biológicos, de carne e osso. Nada tem a ver com a concepção burguesa de família também.
BB: Simbolismo simbólico.
VC: Simbolismo de um herói grego que efetiva o seu destino sem saber que o está fazendo. Esse é o ponto do Édipo. Ou seja, ele vai lá, casa-se com a mãe e mata o pai, como foi dito, pela sina dos deuses. Ele faz isso sem saber. Esse é o ponto que interessou Freud. Édipo fazer sem saber que está fazendo. Daí ele fala: “Tem algo desse herói grego aqui nessa tragédia que me parece muito o que eu estou vendo nos meus pacientes”.
BB: Esse não saber. Consequentemente a falta de responsabilização sobre esses atos.
VC: Mas que está respondendo de forma atuante, de forma inconsciente.
BB: E isso acontece. Esse é o real.
VC: Esse é o real. Inclusive Lacan falava do simbólico, imaginário, real. Este é o real. Ele está pondo em cena uma coisa, e isso é o curioso, as pessoas às vezes se esquecem desse momento; ninguém se pergunta: mas por que o Édipo tinha que fazer isso? Porque é o Laio, pai do Édipo quem cometeu um crime. Laio rapta um dos seus discípulos e quebra com a lei da hospitalidade. O pai do Édipo quebra uma lei e o filho é amaldiçoado por essa sina. Isso é curioso, né? Alguns autores brincam que o Édipo não teve complexo de Édipo. Porque se ele tivesse complexo de Édipo…
Jacques Marie Émile Lacan (1901 -1981)
BB: Ele saberia, e ele podia falar, o que é isso que tá acontecendo que não é meu?
VC: Sim, é um pouco das notícias da alienação dele no desejo do Outro, ou melhor, no gozo do Outro. Esse pai goza transcendendo uma lei transgredindo uma lei, e ele paga pelo que o pai fez. Esse pai numa análise é o ‘Grande Outro’. A gente continua pagando, por exemplo, por um racismo estrutural que foi herdado. Essa herança, que para o Freud, no começo era biológica, se torna uma herança simbólica. Então, o primeiro ponto numa análise toca nesta herança simbólica. A gente testemunha diariamente muita repetição tentando tocar nisso. A aposta é que a gente possa agora colocar nesse ‘Grande Outro’ uma outra forma para os próximos que virão. Por isso também é preciso várias gerações. Mas é sempre essa relação com o Outro simbólico. E quando você fala do “ah, então seria trazer o inconsciente para o consciente”, eu falo da psicopatologia da vida cotidiana
BB: Peraí. Psico..?
VC: Psicopatologia da vida cotidiana. É um texto fundamental do Freud, onde o primeiro ponto é a passagem do biológico para o simbólico e o segundo ponto, por consequência, trata cada vez mais difícil, diferenciação entre o normal e o patológico. No começo se diferenciava: aqui está o normal, aqui está o patológico. A política freudiana subverteu isso com o inconsciente. Já dizia Caetano: “de perto ninguém é normal”.
BB: Ainda buscando essa ideia cristalina, o Freud. Ele então, se problematiza e fala: “nossa, não é bem por aí”. É isso?
VC: Isso. Freud transmite algo pelo conteúdo da obra dele, mas muito mais pela forma da obra, pela série da obra. Porque é visível que ele vai mudando e se questionando das afirmações que ele tinha no começo. É um dos autores que mais tem nota de rodapé. De repente você está lendo ele, lê a nota de rodapé onde ele vai e volta nos próprios textos que escreveu ao longo da vida, e quando você se dá conta, está lendo três textos.
BB: Incrível!
VC: Tem uma simultaneidade do texto ali que é quase uma transmissão do inconsciente pro Freud. E aí, como ele chega no ponto de que o patológico habita em todos? Que já não é mais uma diferenciação do normal, do patológico? Pela linguagem, mais uma vez. A psicopatologia da vida cotidiana. Ela pega exemplos do dia a dia dos então ditos normais, dos sonhos, dos chistes. O Freud vai pegando então formações do inconsciente que se manifesta na linguagem do dia a dia para dizer: “aqui tem algo do meu inconsciente que estou pesquisando, que estou criando, que estou descobrindo”. E aqui tem algo que se aproxima do que eu vejo alguns pacientes que padecem de psicose, de neuroses graves. Freud começou com as histerias. Então tinha, por exemplo, uma paciente dele que esqueceu como fazer o uso da própria língua materna.
BB: Olha que interessante.
VC: Ela falava alemão, mas quando Freud começou a atendê-la, ela só conseguia falar em inglês. Então Freud vai com ela investigando, tenta voltar no tempo com ela. Quando ocorreu essa perda da língua alemã? Ela não sabe. Ela resiste. No começo, ele tentava hipnotizar mas aos poucos vai largando a hipnose porque também colocava ele no lugar de muito poder. Freud vai criando uma coisa chamada associação livre, com uma herança da hipnose, e percebe que o não poder reagir da maneira como gostaria, algo que incomodou, deu asco, deu raiva e a pessoa não conseguiu descarregar, virava sintoma. Decorrência daquele tempo que cristalizou lá atrás. O sintoma que nunca para de ser criado. Então ele vai cada vez mais vendo que o sintoma, e o inconsciente, é uma espécie de patologia da cultura. Aquilo que aquela primeira paciente padecia, também demonstrava um funcionamento da cultura, o recalque. A necessidade do esquecimento de alguns representantes, porém, cujo afeto – o asco, no caso – se mantinha.
BB: Repete, por favor. O sintoma é o inconsciente?
VC: O sintoma e o inconsciente. O sintoma é uma formação que toca no inconsciente. A gente pode dizer, por exemplo, que o racismo estrutural é um sintoma da nossa época, de muitos anos na verdade, mas que agora estamos tentando tratar. E quando pensamos: demorou muito, né? Sim, porque também para muita gente é interessante isso continuar assim.
BB: Com certeza, para muita gente.
VC: Tem uma resistência que o outro carrega também. A hora em que o outro nos transmite uma linguagem que faz a gente também normalizar algumas coisas. Então isso produz o sintoma cultural e o sintoma social.
BB: Sim, é uma coisa que todo mundo divide e mantém, e se aliena.
VC: Então a linguagem iria por aí. Não é a palavra somente no sentido semântico…
Como estamos de tempo?
BB: Por mim eu posso até o meio dia e meia, e depois preciso ir cuidar da Rosa.
VC: Legal. Aliás, você começa essa conversa falando da Rosa, né? O quanto você também aprende com ela.
BB: Total!
VC: Isso é interessantíssimo para pensarmos o que estamos falando aqui: o que é ser pai? É uma questão que toca no Bruno, que agora é pai biológico. É uma questão que toca também numa função não-biológica da qual você está se referenciando no outro, no seu pai, no pai do outro, no cara mais velho, nos livros e também no momento de criação. Você se torna sócio desse outro. Toca em tudo o que eu falei da lei. Da relação com essa lei também em momentos de campanhas políticas.
BB: É o mito. É o mito (risos)
VC: (risos) Exato. Esse pai salvador não existe. Agora, até quando a gente vai resistir a ver que esse pai não existe?
BB: E isso é mais estrutural ainda, né? Ainda talvez isso toque a criação dos deuses
VC: O homem criou Deus à sua imagem e semelhança (risos)
BB: Né? (risos)
VC: Ele foi cada vez mais antropomorfizado. Os deuses no começo eram entidades, eram meio cabeças. Começaram com os animais, totêmico. Até que a gente cria um Deus que esteve entre nós.
BB: À imagem e semelhança!
VC: Antigamente para muitas culturas os deuses eram forças. Até mesmo as brasileiras, são os rios, por exemplo, ou as árvores. Mas tem uma coisa que é meio abstrata, uma coisa natural, uma coisa animal, enfim, uma coisa humana. Eu não sei se é uma coisa comum, mas quando eu fiz aula de pintura, tinha esse movimento também. Meu professor falava para deixar a figura humana para pintar por último, porque é onde temos mais dificuldade. Melhor começar pintando natureza morta. (risos)
Bruno Baptistelli, Autorretrato, 2019 – acrílica e guache sobre papel, 47 x 25 cm. Fotos: Ana Pigosso.
BB: Ah é? (risos) Olha, eu não tive dessa maneira, mas talvez tenha sido o que aconteceu mesmo. Eu tenho um quadro bastante antigo meu, um trabalho que inclusive às vezes eu apresento ou já apresentei, e eu diria que é meio que minha primeira obra. Aliás, enquanto eu falo, eu penso onde que será que ela está?
VC: Como é a obra?
BB: A obra é uma natureza morta, um vaso com lírios e ele está metade pintado, metade por fazer, não é um quadro terminado, mas enfim, me lembrei disso nesse momento. Mas eu acho muito interessante essa questão que você falou das séries, ou pensando a série como o deslocar no tempo e que volta e vai para frente? Muito, muito legal. Não sabia que o Freud fez isso durante sua própria produção. E enquanto você falava sobre esse ponto, eu estava refletindo sobre o capitalismo; como o capitalismo impede isso. No início da nossa conversa eu mencionei como é ótimo você se dedicar ao conhecimento, e como o capitalismo impede também esse tempo de leituras e de pensamentos e de conversas. A gente está aqui. Achou uma janela de tempo que eu poderia vir e a gente conversar. E na verdade, nossos diálogos são uma série, uma grande série, né? onde a gente vai e volta, nós lemos outras coisas, vimos outros assuntos, passamos por outras experiências. Porque também, óbvio, não está só nesse campo de uma linguagem. Aí talvez seja um outro conceito de linguagem. Falamos bastante da linguagem psicanalítica, mas existem outras maneiras de se abordar esse conceito de linguagem.
VC: Ficou muito abstrato o que eu falei? Ficou claro?
BB: Não, acho que não. Mas falando sobre a linguagem corporal, por exemplo, nós também aprendemos com o mundo, e pelo não dito. Também pelo sentido, no sentir, no sentido de sentir pelo corpo.
VC: Direção talvez? A obra voltar é um sentido.
BB: Sim, faz sentido. E que volta no que você falou anteriormente sobre a tua maneira de ler ou ver uma obra de arte, né? Não recordo completamente, mas acho que eu sempre trabalhei muito nesse lugar, de tentar trazer outras maneiras, de ver, sentir, entender, pensar algo. Para mim, a arte deveria ter essa possibilidade e deveríamos sim estar abertos a nos colocar nesse lugar da angústia. Talvez, né? Essa angústia que move, que tem esse segundo momento de ganho da angústia, enfim também no que é certo, no cristalino. É tudo meio junto, imagino. Pensando ao longo da minha trajetória, talvez agora eu esteja tendo mais oportunidade [pausa]; é meio engraçado falar assim, mas estou podendo exercer mais esse lugar da dúvida, ou estão respeitando mais o fato de que é possível ter dúvida. Nesses anos todos de produção, eu sinto que sempre tem uma cobrança de algo, do que a sua arte representa. Então eu acho que é isso, acho que é uma série: você vai e volta, repensa, revê. Algo aparece de maneira que você não pensou em colocar em um segundo, terceiro trabalho, de maneira objetiva, mas é o seu jeito de fazer.
Talvez o capitalismo não tenha me dado tempo de chegar nessas coisas antes, e poder falar sobre, mas eu fui fazendo de alguma maneira e isso foi se afirmando como objeto no mundo.
VC: É o não-dito.
BB: Sim, o não-dito.
VC: Nem sempre o não dito é o maldito (risos).
BB: (Risos) É, me interessa mesmo isso, esse lugar possível. Talvez do que eu entenda como linguagem.
Bruno Baptistelli – trabalhos apresentados na exposição individual “Outro” – Galeria de Artistas (GDA) / imagem superior esquerda: Bola de Cabelo, cabelo, 2004-2019 / imagem superior direita: ‘Bastitelio’, caixa de som, 2019. / imagem inferior centro: Amuleto (em diálogo com Sonya Clark), Cabelo, madeira e linha, 2020-2021.
VC: O que é linguagem para você?
BB: Boa pergunta. Eu andei pensando, lendo um pouco mais sobre isso. Muito se fala sobre as diferentes formas de comunicação, e, na maioria das vezes, a ideia de comunicação é uma ideia de comunicação objetiva. Isso não me interessa. Eu acho que justamente a arte que eu escolhi fazer, a arte visual, tem mais essa potência de não ser objetiva. Porque a língua, que é uma coisa que está dentro do campo das linguagens, tem um lugar um pouco mais objetivo. Por exemplo, estamos conversando há mais de meia hora; tem coisas que você falou e eu, a maneira como você colocou, não entendi cem por cento o significado e acredito que o contrário também. E isso é muito interessante.
Mas enfim, as artes visuais, eu acredito, têm essa potência mesmo de ser uma linguagem. Eu diria que é. Mas eu também aprendi na Universidade que não, a arte não é linguagem. Porque determinados professores colocavam a linguagem nesse campo da comunicação e acreditam então que como ela não era objetiva, não diz que “é” isso, não se considera linguagem.
Voltando à questão do racismo estrutural, nós estabelecemos leis. Talvez você me corrija se eu estou usando “lei” da maneira correta ou não, mas as leis, ou normas, de um tipo específico dominador. E aí pensamos no capitalismo e de como se dá esse poder de dominação. Falando desse campo (visual) que é o meu, vamos olhar outras culturas; em especial populações dos países africanos, populações indígenas ou nativos, para entender, ou pensar que existem outras epistemologías, outras maneiras talvez, de se construir linguagem. Pensei nisso agora, não sei se faz sentido.
VC: Sim. A episteme é uma linguagem. Quando você cita que para o professor não é linguagem, pois não quer dizer algo, isso não coincide com a ideia de linguagem para Lacan. A linguagem é uma maneira de não pensarmos em teoria da comunicação. Teoria da comunicação como noção de receptor, emissor, mensagem, ruído, código…
BB: Sim.
VC: Quase como se o código, o emissor e o receptor estivessem muito próximos da linguagem. Por exemplo, na teoria da comunicação, a gente tenta limpar o máximo de ruído para a ideia chegar a mais claramente possível. Para a psicanálise, o ruído às vezes é o inconsciente. O ruído pode ser uma mensagem.
BB: E esse é um lugar que me interessa muito.
VC: Sim, outro exemplo, muitas vezes na sessão, o analisando não quer falar sobre algo que…
BB: Me incomoda.
VC: Correto. Só que por um lado você não pode forçar senão você pode pôr a transferência água abaixo, e nem passar a mão na cabeça e falar tudo bem, não precisamos falar disso. Lacan subverte isso. Ele fala que o receptor cria a mensagem. Esse é o outro.
BB: O ‘Grande Outro’ é o…?
VC: É o Outro estrutural.
BB: Que é o com O maiúsculo, né?
VC: Isso. E voltando no lance do espelho, a hora em que o Bruno diz: “eu sou o Bruno”, de repente ele vê a sua própria imagem refletida e fala, “nossa”…
BB: Esse sou eu.
Bruno Baptistelli – Exposição Individual “Outro”- Galeria de Artistas (GDA) / imagem do canto superior esquerdo: Vista da exposição / imagem superior direita: Sem título, 2019-2021, tênis Reebok, 30 x 20 x 15 cm / imagem inferior esquerda: “M”, máquina de cortar cabelo, 2019, 14 x 3,5 x 3,5 cm / imagem do inferior direito: Vista da exposição. Fotos: Ana Pigosso.
VC: É louco isso. Vemos isso muito nos bebês, esse momento de auto-reconhecimento. O bebê vai começar a falar, e tem a linguagem própria: ele/ela fala: “bebê quer”, ou então tudo vai ser “bebê”. De repente tudo é “papai”. É tão precioso o que um bebê transmite no passo a passo da série que ele/ela está fazendo para aquisição de linguagem. Inclusive, é aí que na clínica, com crianças, você também detecta algo de uma psicose, que são esses momentos de transição. Eu, outro. Alguns conseguem fantasiar alguma coisa e numa espécie de, digamos, com muitas aspas, mundo interno; delirar sozinho, delirar quietinho, delirar. Mas aí colocar esse delírio em questão. A loucura nada mais é do que um passinho além disso, de não ter alguma possibilidade da pessoa tratar aquilo como uma espécie de fantasia. Então o outro está me invadindo.
Tem alguma coisa que a gente pega nisso que tem tudo a ver com esse momento de transição. Algo do estágio do espelho também nos ajudou a pensar a loucura, ou melhor, o que fez alguns neuróticos conseguirem criar uma espécie de separação que é ilusória. E é isso que interessa à análise. Pensar como esses processos agora acontecem na cultura, como por exemplo, aqueles que são uma “ameaça”: imigrantes, outras culturas, outro gênero. Então o dominante, na nossa cultura, quase sempre é o homem branco hétero que ocupa esse lugar, ele também está usando a estrutura. Então, quando você fala em tirar um ganho da angústia, eu diria como levar a angústia aos dominadores? Como esses podem se angustiar, já que esses têm o privilégio de, no próprio Outro cultural, conseguir se colocar num lugar de vantagem, graças ao fato de que o estranho não o habita, o estranho familiar?
A gente vê então, cada vez mais políticas de segregação visando o interesse de alguns privilegiados.
BB: Sim. Eu vou resolver uma nação eliminando todo o diferente.
VC: Tal como Freud falava: o dinheiro carrega temas tão tabus quanto o sexo. A forma como cada um lida com o dinheiro, aí tem muito que a gente pode analisar. (risos)
BB: (risos). Essa análise vai ficar para outro dia (risos). Muito bem. Acho que agora preciso ir buscar a Rosa, já são 12:30pm. Valeu pela conversa Vinão (apelido do Vinicius).
VC: Com certeza!
Bruno Baptistelli, Aquitafoda II, 2015 – Madeira, fórmica e vinil, Dimensões variáveis. Foto: Daniela Ometto.
Notas: Livro mencionado por Vinicius Costa: FREUD, Sigmund. (1901) Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987
Vinícius Costa recomenda o filme “The Pervert’s Guide to Cinema”, dirigido por Sophie Fiennes:
“Se Pato Daffy se tornasse um crítico de cinema informado pela psicanálise lacaniana, este entretenimento inglês em três partes (2006) de Sophie Fiennes certamente se qualificaria como seu “Duck Amuck”. O teórico Slavoj Zizek, dentro de cenários lindamente construídos que correspondem às localizações de vários filmes, ministra palestras provocativas e dinâmicas sobre 43 clássicos do cinema, muitas vezes gaguejando como o próprio Pato Daffy”. – Jonathan Rosenbaum para Reader.
Imagem herói: Bruno Baptistelli, “Bandeira afro-brasileira (em diálogo com David Hammons)” – 2ª versão, 2020, tecido, 193 x 135 cm, Crédito da imagem: Daniela Ometto.