Atravessando décadas de produção, a artista expandiu sua poética e consolidou a pintura no campo ampliado, ao aliar o olhar arquitetônico a composições cromáticas solares. Tanto já se escreveu sobre a artista e não há esgotamento, o frescor de sua poética demonstra como segue sendo coerente, frutífera e absolutamente relevante diante das questões da contemporaneidade.
Ione Saldanha em seu ateliê, circa 1968. Fotógrafo desconhecido. Cortesia Galeria Simões de Assis.
Em 1949, Ione Saldanha estava prestes a embarcar em uma viagem para a Europa, às vésperas de sua partida decidiu empilhar suas telas no quintal e ateou fogo. Queimaram por dias, soltaram um cheiro terrível e desse período sobraram apenas alguns óleos sobre papel que a família prezou por conservar. Esse ato revela uma rebeldia diante de uma arte conservadora, sem brilho e repetitiva. Saldanha traçou seu caminho a partir da geometria, mas não a mesma da abstração geométrica advinda do construtivismo europeu, a sua própria, a partir de referências arquitetônicas de um Brasil em profunda transformação industrial, questionando o pensamento utilitarista da reprodutibilidade técnica. Esse ato também revela muito de seu espírito independente, da força em não se prender a movimentos, grupos, a política e práticas.
Se retornarmos aos primórdios de sua poética, nos anos 1940 e 1950, a artista já demonstrava interesse pelo aspecto estrutural ao retratar, à sua maneira, paisagens de Salvador e Ouro Preto. Captou sutilezas do sincretismo cultural sob a ótica urbana, entre Portugal e o Brasil colonial, um barroco arquitetônico específico que ocorreu neste país. Apesar das cidades serem forjadas a partir da vivência humana, as de Saldanha eram sempre despovoadas, raras são as silhuetas que apareciam, delineou cenas de casarios com pouca ou nenhuma perspectiva, achatadas no mesmo plano de tela.
Óleo sobre tela, 64.5 x 75 cm. Centro inferior: Ione Saldanha, Casario bahia, 1950. Óleo sobre tela, 64 x 77 cm.
As cidades assemelham-se a estruturas orgânicas vivas, quase como sistemas rizomáticos que refletem também esse espírito catártico. A malha urbana, mesmo sendo planejada e organizada previamente, quando se torna concreta é totalmente contaminada por interferências humanas, desigualdades, intempéries, pela vida que corre nas tramas cotidianas permeadas por atividades econômicas e políticas. As cidades são grandes assentamentos humanos, amalgamam contradições e vida, onde cultura e humanidade criam sua história imbricada no espaço geográfico.
Saldanha olhou para as cidades a partir dessas complexidades, temática que atravessou seu pensamento pictórico aliada ao seu maior núcleo: a cor. Deu volume à cor, usou a matéria, ora foi mais figurativa, ora mais fragmentada, com formas que designam símbolos arquitetônicos e simulavam outras possibilidades como planos recortados, sobrepostos que projetavam certa dúvida de qual angulação estavam dispostos, sendo a cor sua pesquisa mais profunda. Em indicações de uma esfera urbana, suas cidades imaginárias ou referenciadas, eram módulos cromáticos, o empilhamento de cores que forma esse universo poético foi presente nas pinturas, bambus, bobinas e ripas da artista.
Os traços flutuantes eram cobertos com uma névoa que se dissolvia e forjava traços lúdicos na multiplicação dos planos entre linhas e pigmentos. A artista decupou a forma, partiu das fachadas e as recortou, uma fachada afinal era a junção de triângulos, retângulos e quadrados, alguns trabalhos porventura se assemelham a blocos de montar infantis. A liquefação em suas pinturas dissolve planos e suscita dúvidas acerca de sua definição, se a vista é de cima, de lado ou de baixo, ou até mesmo sobrepostos. É com essa névoa que derrete e movimenta a paisagem geométrica.
Ione Saldanha, Sem título (Fachadas), 1956. Óleo sobre tela, 93.5 x 40 cm. Foto: Estúdio em obra. Cortesia Galeria Simões de Assis.
É notável como a verticalidade perpassou décadas orientando o olhar do observador, está nas fachadas de 1956, nos lampiões de 1947 e nos bambus dos anos 1970. Há um pensamento comum entre os trabalhos, as cores já se organizam da mesma forma, demonstrando a destreza na prática poética da artista, evocando uma delicadeza e uma vulnerabilidade formal. Sua feitura vai ficando mais solta a partir da década de 1950, culminando na explosão para o espaço nos anos 1960, um salto para fora da tela. Desdobrou em outras superfícies o espírito da pintura, constituindo uma mescla com o espaço e a natureza.
Ione afirmou “um dia tive vontade de eliminar chassis e telas, sair do retângulo. Só me interessavam as verticais de cores. E mais e sobretudo ficar com o mínimo: uma ripinha e uma ripinha encostada na parede, apoiada no chão, eliminando o rodapé”. As ripas não tem tela, não tem moldura, não tem prego, não tem estrutura para fora da pintura, elas são o que são.
Ione Saldanha em seu ateliê, circa 1968. Fotógrafo desconhecido. Cortesia Galeria Simões de Assis.
Ione Saldanha, Corpo da Cor series, 1966. Óleo sobre tela, 29 x 36 cm. Foto: Estúdio em obra. Cortesia Galeria Simões de Assis.
Saldanha intentou que a cor saltasse para o espaço, compondo uma montagem modular permissiva a diversas possibilidades, a partir da vontade de tirar a pintura e a escultura do pedestal, não há mais frente, verso, avesso, tudo é obra, tudo é ocupação, tudo é movimento.
Ao nos depararmos com esses objetos, percebemos o respeito pelo processo contínuo no qual a vida ocorre. O método de feitura dos bambus é alongado, desde a decisão de qual peça será retraída da natureza até finalmente ser realizada sua pintura. Primeiro a artista escolhia no bambuzal, que deveria estar maduro, haja vista que verde poderia rachar. Era recolhido na lua minguante, de maio a agosto, quando a planta tem menos seiva. Aqui percebemos a comunhão objetual entre as artes visuais e o orgânico, Saldanha esperava as peças secarem por um ano e depois os furava pelo centro, para tirar a resistência e então partia para o lixamento. Apenas depois seguia com a tinta acrílica, quando já estava tudo elaborado em sua mente. Era necessário ser realizado de uma só vez, não aceitava nenhum tipo de remendo. Não há momento para apressar, se caso adiantasse o processo, perderia o trabalho do ano inteiro. Esperava e quando o bambu estava pronto agia de mania precisa, confiava para ressignificá-lo. Há ritmo, há apropriação e respeito pelo tempo.
Ione Saldanha, Bambu, déc. 1980. Pintura sobre bambo, 207 x 13 cm. Foto: Estúdio em obra. Cortesia Galeria Simões de Assis.
É pela experimentação da superfície que constrói um universo cromático singular e reconhecível, seu olhar convoca a absorção, a fuga da fúria cotidiana ao aguardar a ação do tempo. É também um convite para que nós tenhamos o respeito pelo tempo das coisas, que olhemos para o orgânico e aprendamos a viver o tempo do tempo. Em meio a suas pinturas coloridas e motivos geométricos sentimos a suspensão temporal, a partir do construtivo ela consolida um silêncio contemplador.
Ione Saldanha, Untitled, déc. 1950. Óleo sobre tela, 73 x 100,2 cm. Foto: Estúdio em obra. Cortesia Galeria Simões de Assis.
Mariane Beline é curadora, professora e artista visual. Atua na área de curadoria e institucional na galeria Simões de Assis. Pesquisadora com doutorado em andamento no PGHEA – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte/USP. É mestre em Ciências da Comunicação/USP, conta com especialização em Arte: Crítica e Curadoria/PUC-SP, e possui graduações em Comunicação Social (Relações Públicas) e Artes Visuais (Escultura) pela ECA-USP.
Para saber mais sobre Mariane Beline: @marianebeline
Imagem à esquerda: Ione Saldanha, Sem título, (sem data). Tinta acrílica sobre papel, 22 x 16.5 cm.
Imagem à direita: Ione Saldanha, Sem título, 1971. Tinta acrílica sobre papel, 31 x 25,1 cm. Fotos: Estúdio em obra. Cortesia Galeria Simões de Assis.
Ione Saldanha (Alegrete, 1919 – Rio de Janeiro, 2001) iniciou seus estudos em 1948, no ateliê de Pedro Araújo, no Rio de Janeiro. Sua obra recebeu amplo reconhecimento, com participações marcantes em diversas edições da Bienal Internacional de São Paulo — incluindo o Prêmio de Aquisição em 1967 e salas especiais em 1975 e 1979. Em 2001, ano de seu falecimento, foi realizada a retrospectiva Ione Saldanha e a “Simplicidade da Cor” no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC/Niterói). Ao longo de sua trajetória, a artista expôs em importantes instituições, como o MASP, MAM Rio, MON e Paço Imperial.
EXPOSIÇÕES SELECIONADAS
2024 Ione Saldanha: The Time and the Color, Salon 94, Nova York, US
2021 Ione Saldanha: a cidade inventada, Museu de Arte de São Paulo, Brasil
2013 Ione Saldanha: o tempo e a cor, Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, Brasil
Ione Saldanha: o tempo e a cor, Fundação Iberê Camargo, Porto alegre, Brasil
2012 Ione Saldanha: o tempo e a cor, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil
1996 Ione Saldanha, Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil
1994 Bambus e Bobinas, Galeria Anna Maria Niemeyer, Rio de Janeiro, Brasil
1991 Estúdio Guanabara, Rio de Janeiro, Brasil
1990 Flor, estrela, roda, flor, Galeria Anna Maria Niemeyer, Rio de Janeiro, Brasil
1988 Resumo de 45 anos de pintura, Galeria Anna Maria Niemeyer, Galeria Paulo Klabin, Galeria Saramenha, Rio de Janeiro, Brasil
1987 Empilhados e Bobinas, Galeria Paulo Klabin, Rio de Janeiro, Brasil
1985 Ione Saldanha, Galeria Paulo Klabin, São Paulo, Brasil
1984 Painéis de Ripas e Bambus, Galeria Artespaço, Rio de Janeiro, Brasil
1983 Ione Saldanha, Galeria Paulo Klabin, Rio de Janeiro, Brasil
1982 Ione Saldanha, Galeria de Arte do Clube do Comércio, Porto Alegre, Brasil
1981 Ione Saldanha, Galeria de Arquitetos do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil
1979 Bambus, Galeria Ipanema, Rio de Janeiro, Brasil
1971 Bobinas, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil
1968 Ripas, Galeria Bonino, Rio de Janeiro, Brasil
1965 Abstrato, Petite Galerie, Rio de Janeiro, Brasil
1964 Galleries Cadror and Rudolf Manuel, Bern, Suíça.
Galeria da Casa do Brasil, Roma, Italia
1962 Ione Saldanha: pintura, Galeria Relevo, Rio de Janeiro, Brasil
1961 Galeria do Centro Brasileiro de Cultura, Santiago, Chile
1959 Ione Saldanha: pintura 1958-1959, Museu de Arte do Rio de Janeiro, Brasil
1956 Ione Saldanha, Petite Galerie, Rio de Janeiro, Brasil
Museu de Arte Moderna de São Paulo, Brasil
COLEÇÕES
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil
Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil
Museu de Arte Moderna de São Paulo, Brasil
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, Brasil
Museu de Arte do Rio de Janeiro, Brasil
Museu de Arte Contemporânea, Niterói, Brasil
Museum of Fine Arts, Houston, EUA
Ione Saldanha, Sem título (Espiral), 1960-1980. Acrílica sobre madeira, 3 × 65 cm. Cortesia Galeria Simões de Assis.