Algumas coisas que fazemos nos são de tal forma naturais que, embora necessariamente racionalizadas, nem sempre os processos são conscientes. Para mim, o trabalho com madeira está neste caso.
Não tenho registro de quando despertei para a madeira. A sensação é de que sempre estivemos juntos. Ora mais próximos, ora mais apartados, como nas amizades de fato. Foi assim desde a infância vivida no Oeste Paulista.
Em relação ao ofício de marceneiro sempre fui autodidata, além de curioso, metódico, auto desafiador e ainda ignorante. As árvores são muito amigas da espécie humana: vivas sequestram carbono, disponibilizam oxigênio, umidade, controle térmico, beleza paisagística, frutos, etc. Mortas nos dão, minimamente, carvão, papel e madeira, que desde os primórdios da humanidade engenhosamente usamos para fabricar objetos e utilitários que nos acompanham do berço ao caixão. É nesta segunda condição que o ofício se estabelece.

Para cada trabalho executado, várias sobras se acumulam. Aquelas com dimensões muito pequenas ou problemas graves são descartadas e todas as outras, guardadas.
Quando em 1996 resolvi mudar da capital paulista para uma cidadezinha da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, as madeiras vieram junto.
Depois de mais de vinte anos fazendo portas, janelas e móveis, inumeráveis sobras se juntaram àquelas da capital. Quando perguntavam porque guardava tantos pedaços de material, respondia que ali estava a minha aposentadoria.
Ainda antes da pandemia, um amigo sabedor dos meus guardados e intenção, observando o acréscimo de madeira na minha oficina, ironicamente perguntou quantos anos eu achava que iria viver. Entendi a mensagem e resolvi não comprar mais madeira. Dali em diante inverteu-se a proposta: os novos trabalhos devem se adequar ao material disponível, às suas combinações e limitações estruturais.
O privilégio de viver no alto da serra, contemplando o mar de montanhas, escancara a complexidade da harmonia do todo e a importância crucial de cada pequeno detalhe, como numa sinfonia. Tendo isto sempre presente, racional e animicamente, inicio cada nova peça.
Cada uma é um desafio diferente. Assim como cada pedaço de madeira, cada peça é única e irreplicável, mesmo aquelas feitas em pequenas séries, que diferem nos detalhes. Sendo assim há um aumento considerável de tempo para a execução de cada peça. Seria muito mais rápido partir de uma prancha e separar o que se quer. Mas aqui o objetivo é a utilização do guardado em oposição à velocidade e novo abate.
Muitas vezes a inspiração vem através de um desafio técnico e então começo a desenrolar mentalmente cada etapa da execução, o questionamento da sequência correta delas, o instrumental mínimo e a busca pelo melhor material disponível.
Invariavelmente o material tem dimensões diferentes das necessárias, normalmente pequenos fragmentos, o que me obriga ao desafio de adequá-los. Esta etapa propicia o exercício da habilidade mental de prever os riscos à segurança e a precisão da coordenação motora.
Faço então um ensaio. Sinto os pontos críticos, resolvo as dúvidas. Preparo as ferramentas e os itens de segurança. Separo as peças e disponho na posição de trabalho, todas alinhadas em sequência.
Então ligo a máquina e começo a meditação. A repetição é o mantra, a precisão o foco. Nada mais deve existir.
Etapa por etapa: preparo, montagem e acabamento.
Terminado o trabalho, transformação visível. Do material e do trabalhador. O sentimento de ter conseguido avançar no conhecimento da técnica, do material e, às vezes, de si mesmo.
Diante do panorama incansável da serra a certeza da imensa pequenez de tudo.
Fotos: Christian Sievers