Lendo How to Listen to Jazz de Ted Gioia, fiquei encantada com um ótimo exemplo que o autor deu diante dessa dificuldade — uma sugestão de como tentar ser mais sensível a esses pontos de ruptura nas artes. Gioia estava tentando entender mais a fundo a genialidade de Louis Armstrong. A solução que encontrou não foi ouvir todos os discos do músico, mas o contrário. Por algumas semanas, o escritor escutou apenas ao jazz feito antes de Armstrong. Quando finalmente se permitiu ouvir Armstrong “scatting” – improvisando com a voz, imitando o som dos instrumentos – a mudança foi clara! E tudo o que Gioia ouviu de Armstrong depois, refletiu esse novo paradigma. É uma situação “antes e depois”. Para mim, Betty Woodman representa uma mudança radical nas artes – um mundo “antes e depois” de Betty Woodman.
Pablo Picasso, Les Demoiselles d’Avignon, 1907, Óleo em tela.
Nascida em Connecticut em 1930, Woodman dividia seu tempo entre Nova York, Boulder, no Colorado, e Antella, na Itália. A primeira vez que tocou em argila na escola, aos 16 anos, fez um jarro. Em uma entrevista para os Archives of American Art em 2003, Woodman contou que durante a Segunda Guerra Mundial, ela também fez modelos de aviões, “incluindo um Messerschmitt, para os guardas antiaéreos usarem para identificar aeronaves alemãs”. Depois de concluir a School for American Craftsmen em Alfred, NY, em 1950, começou a dedicar sua energia à cerâmica – ainda focada em peças funcionais, como tigelas, pratos e xícaras. Duas vezes por ano, organizava vendas na calçada de casa quando morava em Boulder.
Woodman também era uma ativista da cerâmica. Na década de 50, convenceu a cidade de Boulder a criar um programa dedicado ao assunto. O governo municipal desativou uma estação de bombeiros e iniciou a primeira escola de cerâmica do país administrada pela cidade. No começo, havia uma aula por semana à noite, com menos de 10 alunos participando. No documentário “Woodmans“, Betty aparece em 1991 lembrando: “Quinze anos depois, havia 400 alunos participando de aulas em sessões de 8 semanas de duração. Tornou-se um programa muito importante.” A iniciativa atraiu alguns dos ceramistas mais talentosos dos EUA e se tornou um modelo nacional para outros programas de várias cidades. Ainda nos anos 50, começou a passar parte do ano morando e trabalhando na Itália, incorporando o estilo de cerâmica tradicional do país.
Betty Woodman e George Woodman nos fornos de queima de cerâmica de Betty, Antella, Italia, c. 1973. Cortesia dos Arquivos da Fundação da Família Woodman.
Betty Woodman, Venus #7- Homey, 2014, cortesia da Galeria David Kordansky.
Em janeiro de 1981, a artista Francesca Woodman, filha de Betty, tirou a própria vida aos 22 anos, pulando de uma janela em Nova York. Lidando com o luto, Betty parou de fazer apenas cerâmicas funcionais e começou a explorar o que mais tarde se tornaria seu estilo tão característico. “Como lidei com a culpa?” ela pergunta no mesmo documentário, “Tentei fugir. Não há como lidar com esse assunto.”
Conforme foi se afastando das peças funcionais, começou a procurar uma representação como artista. Acabou se associando a Max Protetch, um galerista famoso por exibir desenhos arquitetônicos. Protetch estava acostumado com essa zona cinzenta entre funcionalidade, artesanato e artes. Sua primeira exposição na Max Protetch Gallery foi em 1983 e os dois trabalharam juntos até a década de 2010.
Enquanto Woodman desenvolvia sua carreira na Costa Leste dos Estados Unidos, um mundo mais masculino da cerâmica também surgia na Califórnia. Woodman se referia ao ceramista Peter Voulkos e seus colegas como sendo muito “machos”. Ao mesmo tempo, falava sobre como os vasos — o objeto cerâmico arquetípico – também são “um símbolo de uma figura, de uma mulher. Metaforicamente, um recipiente; tem essa conexão para todos.” A autora Ursula K. Le Guin tem um texto belíssimo de 1986, The Carrier Bag Theory of Fiction, onde ela relaciona o trabalho “doméstico” invisível das mulheres com as tigelas moldadas na forma de úteros e seios, feitas ao longo da história. Le Guin redefine o quão importantes foram esses artefatos para a sobrevivência e desenvolvimento da raça humana.
Betty Woodman em seu estúdio, Boulder, Colorado, 1961. Foto: George Woodman, cortesia do artista.
A relevância de Woodman é clara quando ela se torna a primeira artista mulher viva a ser tema de uma retrospectiva no Metropolitan Museum, no verão de 2006. A The Art of Betty Woodman abrangia a carreira da artista desde seus primeiros trabalhos nas décadas de 50 e 60, até suas peças de técnica mista de 2005-2006. Na página do museu sobre a exposição, lemos: “O vaso foi seu assunto inicial – e ao longo do tempo, tornou-se seu tema mais marcante. Para Woodman, o vaso pode ser um recipiente, uma metáfora ou uma referência artística. Seu trabalho remete a inúmeras fontes, incluindo arte minoana e egípcia, escultura grega e etrusca, obras da Dinastia Tang, maiólica e porcelana de Sèvres, arquitetura barroca italiana e as pinturas de Picasso e Matisse.”
Gosto de pensar que até mesmo os modelos de aviões a influenciaram, e alguns de seus vasos parecem literalmente grandes pássaros excêntricos prestes a levantar voo. Lembro da primeira vez que vi seu trabalho, no Whitney Museum, em Nova York, nos anos 2000, e fiquei fascinada. A superfície brilhante, as cores, a expansividade ousada dos vasos dominando a parede, suas asas se espalhando. A plaquinha do museu descrevendo o vaso em uma prateleira, intitulado Hydrangea, de 1987, dizia algo como: “segundo a artista, esta peça pode ou não ser usada como um vaso”. A flexibilidade, a aceitação do limbo entre o design funcional e a arte de nível museu, era acolhedora. A existência de suas peças em qualquer espaço é como uma rosa desabrochando, nos impressionando com sua fertilidade e aspecto sensual. Se “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, como escreveu Gertrude Stein, sinto que “um vaso é um vaso é um vaso”. São pura poesia e presença — indescritíveis. Woodman trata suas peças de cerâmica como pinturas. Não apenas na maneira de pintar, com cores vibrantes, mas também ao criar instalações de parede, preenchendo o espaço de uma maneira que nunca havia imaginado antes ser possível com uma peça de argila.
Betty Woodman, Tables and Vases, 2006, cerâmica esmaltada, epóxi e laca.
Betty Woodman, Seashore, 1998, cerâmica esmaltada, epóxi, tinta laca.
Betty Woodman, Exposição House of South na Galeria Salon 94, 2021.
C. Richards (1916-1999), poeta, escritora e ceramista que foi professora na escola de arte experimental Black Mountain College no final dos anos 1940, tem um livro clássico sobre cerâmica em que aborda o tema de forma filosófica. Em um de meus trechos favoritos, Richards reconta uma fábula chinesa:
‘Um nobre está cavalgando pela cidade e passa por um ceramista trabalhando. Ele admira os potes que o homem está fazendo; nota a graça e uma espécie de força crua neles. Ele desmonta do cavalo e conversa com o artista. ‘Como você consegue criar esses recipientes de beleza tão convincente?’ ‘Oh,’ responde o ceramista, ‘você está olhando apenas para a forma externa. O que estou formando está dentro. Estou interessado apenas no que restará depois que o pote for quebrado.’
Além de celebrar a importância do processo, podemos usar essa fábula para refletir sobre o quão invisível é ser revolucionário. Uma vez que alguém muda o paradigma, fica difícil imaginar o mundo sem sua influência. Podemos ter dificuldade em pensar que nem sempre foi assim.
Betty Woodman, Still Life Vase #15, 1991, cerâmica esmaltada, epóxi e laca. Cortesia da Galeria David Kordansky.
Imagem à direita: Betty Woodman, Venus #7- Homey, 2014. Cortesia da Galeria David Kordansky.
Betty Woodman em seu estúdio, Antella, Italia, c. 1996. Cortesia dos Arquivos da Fundação da Família Woodman.
Alexander von Humboldt (1769-1859) teve um efeito semelhante – percebeu a interconexão da natureza de maneira tão profunda que não conseguimos imaginar um mundo onde isso não fosse verdade – tanto é que se torna fácil ignorar o poder de suas descobertas. “Ele foi pioneiro na noção de que o mundo natural é uma teia de elementos entrelaçados – um ecossistema –, cada um em diálogo dinâmico constante com todos os outros. Seu legado não é tanto uma descoberta única (…) – é uma mentalidade, uma visão de mundo”, como Maria Popova explicou.
Para mim, Woodman faz parte desse time. Louis Armstrong, Alexander von Humboldt e Betty Woodman. Se agora estamos acostumados a ver esculturas de argila, vasos e instalações de cerâmica por toda parte, é porque houve Betty. Sua visão poderosa vai além das definições do que é artesanato ou arte e inclui a mudança na relação de uma cidade inteira e, em seguida, de um país com o barro. Precisamos de Betty e suas asas.
Louis Armstrong, 1965.
Elizabeth Woodman, nascida em Norwalk, Connecticut (14 de maio de 1930 – 2 de janeiro de 2018), foi uma artista e ceramista americana.
Gisela Gueiros é uma historiadora de arte, consultora de arte e educadora brasileira com base em Nova York desde 2007. Ela fundou sua galeria itinerante, Gisela Projects, em 2021. Desde 2013, organizou mais de 40 exposições de arte independentes e colaborou com importantes galerias brasileiras. Seus tours de arte pelos distritos de galerias e museus de Nova York, destacados nas páginas da New York Magazine, Folha de São Paulo e Vogue Brasil, tornaram-se compromissos essenciais para turistas e residentes desde 2010. Além disso, foi convidada para curar exposições com artistas como Alfredo Volpi, Elizabeth Jobim, Paulo Pasta, Dudi Maia Rosa, Chiara Banfi, entre outros. Em 2020, Gueiros curou várias exposições para a nova plataforma virtual Preview, co-fundada pelo curador e historiador de arte Gabriel Perez-Barreiro. Gisela trabalhou como educadora no Museu Guggenheim e como guia para Artful Jaunts. Além disso, é mãe de gêmeos, ceramista e escreve um boletim informativo semanal.
@giselagueiros www.giselagueiros.com https://giselagueiros.substack.com