Alex Malheiros encontra Arthur Malheiros

Alex Malheiros é um baixista brasileiro, mais conhecido como membro fundador do Azymuth, trio que revolucionou o jazz-funk com uma fusão de samba, soul e música eletrônica e levou o jazz brasileiro para os quatro cantos do planeta. Nascido em Niterói, começou sua carreira nos anos 60 e, ao longo de mais de cinco décadas, consolidou-se como um dos nomes mais influentes da música instrumental brasileira, tornando-se também referência global no cenário do jazz contemporâneo. Com o Azymuth, lançou dezenas de álbuns e se apresentou em grandes palcos como o do Montreux Jazz Festival. Alex construiu ainda uma sólida carreira solo, com discos como Atlantic Forest e Tempos Futuros, e colaborou com artistas como Milton Nascimento, Jorge Ben Jor, Marcos Valle e até Stevie Wonder. 

Arthur Malheiros é um artista visual com ampla experiência em pintura, escultura e mídias digitais, conhecido por uma trajetória marcada pela exploração de materiais e técnicas. Apaixonado por desenho desde a infância, seu percurso artístico evoluiu por meio de estudos formais e uma prática multidisciplinar que abrange do design gráfico à escultura contemporânea. Estudou na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), fez cursos na Panamericana de Arte e na Continental School nos anos 1960, além de frequentar aulas com Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna (MAM) em 1969. Também aprofundou seus conhecimentos técnicos com cursos de pintura automotiva na DuPont Polidura, em São Paulo.

Alex Malheiros e Arthur Malheiros são irmãos. 

Arthur Malheiros: Que bom estarmos juntos novamente. É sempre especial voltar a esse lugar. Lembra do antigo mirante onde a gente descia de carrinho de bilhas? Você, Alex, saltava com a Vespa, corajoso como sempre. Agora é o Museu de Arte Contemporânea, uma obra do Niemeyer, mas pra nós ainda tem cheiro de mar, de mariscos fervendo nas panelas dos coletores nas pedras ali embaixo… Das nossas pescarias de polvo e badejo, mergulhados na água e na infância.

Alex Malheiros: E as cocorocas na praia de Icaraí? A gente pegava com canicinho… É tudo tão vívido. Cada canto dessa cidade me devolve uma lembrança.

Arthur: E eu ainda sinto o cheiro de amplificadores valvulados, cola de sapateiro, solda de ferro quente… Placas eletrônicas, instrumentos musicais, cordas de guitarra, caixas acústicas. Pura nostalgia. É bom estar em Niterói.

Alex: Pois é, Arthur. Nossa casa. Onde tudo começou. Lembro da sala cheia de instrumentos. Papai afinando o violão, o tio Geraldo consertando os alto-falantes, a mamãe cantarolando baixinho enquanto preparava o almoço. Era um burburinho constante de criatividade e afeto.

Alex Malheiros and sua mãe, Juslei dis Reis. Cortesia da família.

Arthur: A gente foi moldado por aquele ambiente. O galpão do papai era quase um templo. Eu passava horas vendo ele no contrabaixo acústico. E o tio Geraldo, entre cabos, guitarras e soldas. Eles falavam com tanta paixão sobre o som, como se estivessem esculpindo música com as mãos. E eu ficava hipnotizado por aquela alquimia sonora.

Alex: E o tio Eduardo Malheiros também. Foi ele quem me ensinou o “Pulo Gato”, aquela levada cheia de malícia e balanço, que virou um segredo de família. Ele falava da música como quem fala de um caminho sagrado. Aquilo ficou em mim.

Arthur: Eu me encantava pela forma, pelas cores. Quando víamos os filmes musicais com o pai, não era só o som que me pegava. Era a estética toda: os figurinos, os palcos, as luzes. Eu queria transpor aquilo para o papel. As guitarras com reflexos, os cenários psicodélicos… Tudo virava traço e tinta na minha cabeça.

Alex: E eu já era fisgado pelo som. Queria entender como as notas se encaixavam, como o timbre mexia com a alma. Tentava imitar os solos dos discos, buscando uma expressão que fosse só minha. Era como desenhar com sons. E tudo tinha a ver com aquele cuidado que eles tinham com a matéria: madeira, metal, válvula, corda, nota.

Arthur: Nossa busca pela expressão é o que nos une. Você através da harmonia, melodia, ritmo. Eu na linha, na forma, na composição visual. Os nossos pais e tios nos ensinaram a respeitar a matéria-prima – seja um instrumento ou uma tela. Arte, para eles, era escuta, trabalho e entrega.

Alex: Papai (seu Zezinho) e titio Geraldo passavam noites inteiras ajustando um instrumento, buscando aquele “crunch” perfeito no som. Eles falavam que era um “diálogo” com o equipamento. E não era exagero.

Imagem à esquerda: José Alexandre Malheiros (pai de Alex e Arthur), c.1960. Imagem à direita: José Alexandre Malheiros e sua banda, The Oxford, c.1960.
Cortesia da família.

Nos tempos do Cassino em Icaraí — da esquerda para a direita: Valdir (“Pássaro Triste”) no clarinete, José Alexandre Malheiros, músico desconhecido nas maracas, Brotinho na bateria, tio Geraldo na guitarra e Tiozinho na guitarra havaiana. Esse grupo acompanhou Cauby Peixoto pelo interior de São Paulo no auge da carreira do cantor. Cortesia da família.

Arthur: Mamãe, quando cantava, parecia entrar em transe. Se entregava à música com a alma inteira. Essa escuta sensível, essa conexão com algo invisível, me inspira até hoje. Tento captar isso nas minhas telas.

Alex: Muitas vezes, compondo, tenho a sensação de que não estou criando, mas revelando algo que já estava ali, escondido nas cordas. Só precisava encontrar o caminho certo.

Arthur: É exatamente isso. A mesma fonte, dois caminhos. Você com as notas, eu com os traços. A missão é a mesma: tocar as pessoas, transportá-las, emocionar.

Alex: E no fundo, tudo vem daquela casa. Daquelas conversas, dos instrumentos, das tintas, das vozes, dos pratos na cozinha, da fé nas mãos.

Arthur: E da admiração mútua. Eu pela sua música, você pela minha arte. Isso também é herança: o respeito pela expressão do outro.

Alex: É um legado. E que bom que carregamos isso juntos.

Arthur: Pra encerrar, conta um pouco sobre o Azymuth. Pra quem estiver nos lendo entender o que a música fez com a sua vida.

Formação original do Azymuth, da esquerda para a direita: Ivan Conti, conhecido como Mamão (bateria, percussão), José Roberto Bertrami (teclados) e Alex Malheiros (baixo, guitarras), c. 1970. Cortesia da família.

Algumas das capas de discos do Azymuth.

Alex: Quando a gente começou, no fim dos anos 60, ninguém imaginava onde o Azymuth chegaria. A gente era um grupo de amigos. Tocávamos em bandas diferentes, no palco do Canecão, e nos víamos entre shows. O Zé Roberto nos juntou num grupo que ainda nem se chamava Azymuth. Fizemos discos “comerciais”, como se dizia. Mas ali começou a nascer o que queríamos: misturar samba com jazz, com funk, com rock, com tudo que amávamos.

Eu no baixo e guitarra, o Ivan Mamão na bateria, o Zé Roberto Bertrami nos teclados (os analógicos, cheios de timbres malucos), e o Ariovaldo na percussão. Era uma alquimia sonora. A gente queria inventar um som novo, com a cara do Brasil e os ouvidos do mundo.

Foram anos de ralação. Tocávamos para outros artistas, gravávamos bases, ensaiávamos sem parar. Mas sabíamos que tinha algo especial ali. E o público sentiu isso também. Quando os discos começaram a sair, abrimos caminho fora do Brasil. Fomos parar em lugares que nem imaginávamos. O Azymuth virou sinônimo de um som brasileiro moderno, dançante, sofisticado.

Alex Malheiros e sua banda de bossa nova se apresentando em um dos palcos da cervejaria Canecão, antes do local se tornar um renomado espaço de shows. Na época, a cervejaria contava com três ou quatro palcos onde diferentes bandas se revezavam. Da esquerda para a direita: Zé Luiz Duarte (piano), Alex Malheiros (baixo) e Murilo Rocha (bateria). Alex, Mamão (baterista do Azymuth) e Zé Roberto Bertrami (tecladista do Azymuth) faziam parte de grupos diferentes, mas admiravam profundamente o trabalho uns dos outros. Cortesia da família.

Grupo Seleção (pré Azymuth), 1969-1972. Da esquerda para direita: Zé Roberto Bertrami, Alex Malheiros, Fabíola Sendino, and Ivan Conti “Mamão”.
Cortesia da família.

Da esquerda para a direita: Alex Malheiros, Zé Roberto Bertrami, Ariovaldo Contesini and Ivan Conti “Mamão”. 1973-75.    

Até hoje estamos na ativa. A vida muda, os tempos mudam, mas a essência permanece: amor pela música, vontade de fazer algo verdadeiro. Subir num palco e ver que nossa música ainda mexe com as pessoas é um privilégio. É uma jornada longa, com altos e baixos, mas sempre guiada pela paixão sonora.

Ah! E tem uma coisa que nunca me esqueço: a capa do compacto “Melô da Cuíca”. Uma visão futurista do Rio de Janeiro, com ogivas, antenas parabólicas e um céu vermelho, laranja e amarelo. Parecia o amanhecer de outro planeta. Aquela imagem era o retrato da ousadia do nosso som. Um delírio visual e sonoro. Como tudo que a gente sempre buscou.

Álbum Melô da Cuíca, Azymuth, 1975. Cortesia da família.

Arthur Malheiros, Estudos, 1977-78. Nanquim. Cortesia da família.

Imagem à esquerda: Alex Malheiros se apresentando na Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro, 2025. Imagem à direita: Cartaz do Montreux International Jazz Festival, criado por Milton Glaser, 1977. O Azymuth foi o primeiro grupo brasileiro a ser convidado para se apresentar no festival.
Cortesia da família.

A Art Dialogues gostaria de homenagear Azymuth — desbravadores da música brasileira — por seu legado inovador e uma vida inteira dedicada ao som.

Sua trajetória é marcada pela amizade, resiliência e uma experimentação destemida. Dos palcos do Rio de Janeiro ao reconhecimento internacional, o Azymuth sempre se manteve fiel à sua verdade musical, convidando gerações de ouvintes a mergulhar em um ritmo ao mesmo tempo sofisticado e profundamente humano.

Nascido de uma mistura lúdica e intuitiva de influências musicais, Azymuth sintetizou os gostos únicos de seus integrantes. Fascinados pelo jazz americano, R&B e pela cena funk emergente, ousaram experimentar com os ritmos do samba local — em uma época em que essa fusão era território inexplorado. Foi assim que surgiu o Samba Doido — um estilo que abriu novos caminhos para a música brasileira. Ele foi além da elegância rítmica da bossa nova e criou uma paisagem sonora rica, sensorial e inteiramente original.

Sua música revelou uma nova realidade para o público brasileiro, ao mesmo tempo em que encantou ouvintes ao redor do mundo com sua inovação, suingue e profundidade emocional. Mais do que uma banda, Azymuth tornou-se um símbolo do que significa permanecer fiel à visão artística, abraçando a transformação.

Temos orgulho em celebrar sua contribuição extraordinária para a cultura — seu som, energia, curiosidade e amor continuam ressoando. Um brinde à música, a Ivan “Mamão” Conti e José Roberto Bertrami — que já seguiram seu caminho para outro universo —, a Alex Malheiros, que segue compartilhando seu som magnético, e à magia do Azymuth: atemporal, destemida e sempre à frente de seu tempo.

Um agradecimento especial a Arthur Malheiros e Keta Baramishvili [que também colaborou neste texto] por tornarem este momento possível.

Para saber mais sobre Azymuth: @azymuthoficial

Imagem herói: Arthur Malheiros, sem título, 1978. Nanquim e pastel. 

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