Essas foram algumas das perguntas que vieram, ao pensar esse texto. A verdade é que qualquer uma dessas trilhas poderia funcionar, não foi simples escolher. Conheço a Carol Chediak de pertinho e o percurso da Casa de Pedra desde sua fase embrionária. Foi então que, no meio de uma madrugada, adotei pra mim o que costumo propor aos artistas: responder à pergunta “o que faz mais sentido?”.
Dessa forma, coloquei-me a pensar na Art Dialogues, uma revista com o objetivo de expandir diálogos sobre arte. Então, decidi me deixar guiar pela essência e forma da revista e pela maneira como gosto de conversar, me dispondo a escrever sobre percursos e processos ou ainda caminhos e afetos.
Este é um texto sobre a Carol e a Casa de Pedra, mas também sobre mim. Porque sempre que nos colocamos em alguma coisa, deixamos algo de nós e mostramos um pouco de quem somos.
A essência do meu trabalho parte do princípio da identidade de Heidegger (em “Identidade e Diferença”) que, em oposição à fórmula A = A, afirma categoricamente: “A é A, quer dizer, cada A é ele mesmo o mesmo.” Por isso, me coloco aqui, disposta a estar nesse lugar de aproximação e trazer a perspectiva da identidade da artista em diálogo com a Casa de Pedra.
Fachada da Casa de Pedra, Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Cortesia Carol Chediak.
Meu primeiro encontro com a Carol foi em junho de 2021. Ainda vivíamos o contexto da pandemia. Começamos então um percurso de olhar e, principalmente, de escutar seus trabalhos. Refletimos sobre memória afetiva e potência de vida, sobre o que movia suas ações, por dentro e por fora. O interesse pela relação com as pessoas, pela escuta — do corpo e do outro — sempre esteve no âmago da sua produção. E a casa, ainda com letra minúscula, já rondava nossas conversas.
Ao resolver encarar a casa da família, que estava abandonada, Carol faz do seu retorno, uma vivência de partilha. Convida, individualmente, grupo de artistas para visitar a casa e, em seu quarto, conversam sobre as memórias do quarto de infância de cada um. A partir dessa ação, há o desdobramento da relação com a casa em um projeto de arte, que vai gerando desdobramentos sucessivos e intervenções da artista no espaço, durante o processo de reforma e reabilitação do lugar. Foi uma caminhada muito bonita e desafiadora até o entendimento da casa como um ambiente de arte e a decisão de abri-lá ao público.
Carol Chediak, Quarto de Infância, 2021. 5’54”. Cortesia da artista.
A Casa de Pedra, fica no Rio de Janeiro, tem uma bela fachada de pedras, de onde deriva seu nome. Ela não nasceu pensada como espaço expositivo, tampouco foi idealizada como ateliê. Era a residência de infância da Carol e após cada membro da família ir deixando o local, a casa passou muitos anos fechada, abandonada. A partir da decisão da artista de olhar e sentir novamente a casa, aos poucos, o abandono foi sendo transformado pelos processos que elaboram situações da vida em arte (para Carol, não há como separar a arte da vida). Começou acolhendo silêncios, depois palavras, depois gestos e criações. A pedra no nome não é acaso: é estrutura, é presença e a Casa — que era uma casa — foi virando território de escuta, de trocas, de encontros entre arte e vida. O espaço então se tornou extensão do corpo da obra da artista, ou talvez, um corpo em si.
Carol Chediak, Abrindo espaço no.4, 2021. Impressão digital em papel algodão, 73 x 110 cm. Cortesia da artista.
Durante nossos encontros, fomos entendendo que a Casa não é apenas um lugar de abrigo de obras de arte. Ela é a própria obra. Uma obra em constante processo. É importante dizer que a Casa de Pedra foi abrindo suas portas para o público sem deixar de ter a essência de uma casa, como um lugar de acolhimento, que se habita. A visita à Casa não é um evento, é uma experiência íntima. Nela, arte não se impõe — convida. Tornou-se espaço independente de arte, assumiu o que agora entende-se como sua vocação. Talvez por isso esteja cada dia mais radiante, com movimento. Lugar de ateliês, exposições, encontros e residências artísticas nacionais e internacionais. Recebe artistas, curadores, pesquisadores, crianças, enfim, pessoas de diferentes idades e identidades para propor, vivenciar e desenvolver projetos. A Casa recebe pessoas dispostas a se relacionarem com arte, com o espaço e entre si.
Carol, ao imprimir nesse espaço sua poética, o fez pulsar. Vale explicitar aqui que sua arte é processual, baseada em uma estética relacional, onde os objetos e obras materiais existem como rastros, vestígios ou indícios do trabalho. Ela estabelece em seus projetos uma arquitetura do encontro e escuta do outro, que atuam em uma dimensão de reflexão individual ao mesmo tempo em que é coletiva, social. No mundo onde atualmente impera um individualismo exacerbado, certamente há uma urgência em amplificar a capacidade de escuta e acolhimento humano, para conseguirmos partilhar de um jeito mais consciente e respeitoso (Carol diria que também afetuoso), a vida em sociedade.
Esse processo de fazer da arte um modo de existência, de ver a vida na arte e a arte na vida, é comovente. Artistas, no meu entender, manifestam seu ser e existir no mundo pensando e friccionando as questões de seu tempo, através da estética e fruição. Portanto, escrever sobre a Carol e a Casa de Pedra é, de certo modo, escrever sobre algo que acredito: a arte pode ser um lugar de presença, de partilha, de significação.
Carol Chediak, Abrindo espaço no.1, 2021. Impressão digital em papel algodão, 73 x 110 cm. Cortesia da artista.
Carol Chediak, Outra luz, mesmo lugar no.1, 2022. Impressão digital em papel algodão, 73 x 110 cm. Cortesia da artista.
Carol Chediak, como já comentei, não separa a vida da arte e a arte da vida. Sua poética nasce do cotidiano, da escuta, das relações, da consciência do corpo sensível e do corpo social. Em seus processos percorre diversas linguagens — instalação, fotografia, vídeo, performance — mas, para além de qualquer linguagem, é uma artista da presença.
Sua trajetória é marcada por uma constante busca de sentido no encontro com pessoas. E talvez por isso a Casa de Pedra tenha se tornado um prolongamento tão natural da sua prática artística porque ali, o espaço é ativado como um corpo sensível, da mesma forma que ela ativa o corpo sensível dos outros em suas obras. Carol não se impõe, ela propõe.
Acompanhando seu percurso percebi o quanto sua produção está comprometida com a delicadeza — não no sentido de suavidade, mas de atenção radical. Ela olha o que muitos não olham. Se detém no que pode parecer pequeno. E é ali, nesse gesto de permanência, que sua arte aparece. Na contemporaneidade, em que tudo é urgência e produção, Carol insiste na delicadeza de colocar sentido com cuidado, afeto, escuta e sem pressa. Assim, a Casa tornou-se um espelho do seu modo de ser e estar no mundo.
Não é apenas um lugar onde acontece arte — é uma instalação viva, uma morada-poética.
Gisele Bento Fernandes, é uma curiosa do mundo interno de artistas e da arte. Atua com acompanhamento individual de artistas e curadoria independente. Mestranda em Estética e História da Arte pela USP (Universidade de São Paulo); é membro do grupo de pesquisa HISTARTHE – História(s) da Arte: Historiografia e Epistemologia (MAC USP) e do grupo Acervos Digitais e Pesquisa. Máster em Cultura Histórica e Comunicação pela UB (Universitat de Barcelona), pós-graduada em Publisher, com atuação em editorial de livros. Tem como formação inicial e experiência de base a Educação.
Para saber mais sobre Gisele Bento: @giseleben
Carol Chediak, Respirando tempos, 2024. Instalação site specific, impressão em voil, 3 x 2 m registro da obra em vídeo, 41″. Cortesia da artista,
Carol Chediak é artista visual brasileira, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Sua prática investiga as interações humanas em suas dimensões visíveis e invisíveis, considerando tanto o corpo sensível quanto o corpo social e coletivo. A vivência e a observação são pontos de partida fundamentais em seu processo criativo, que se desdobra em fotografias, vídeos e performances como formas de expressão estética.
Para conhecer Carol Chediak @carolinachediak
Casa de Pedra @casadepedra.arte
Carol Chediak, Abrindo espaço no.3, 2022. Impressão digital em papel algodão, 73 x 110 cm. Cortesia da artista.
Hero image: Carol Chediak, Construir, 2021. Impressão digital em papel algodão, 73 x 110 cm. Cortesia da artista.