Ana Biolchini

Ana Biolchini (nascida em 1953, Rio de Janeiro) é uma artista interdisciplinar cuja prática abrange uma ampla gama de materiais e técnicas, incluindo pintura, vídeo, fotografia, serigrafia, cerâmica, cera, bordado e performance. Também realiza instalações e “ações” — intervenções artísticas que desfazem as fronteiras entre arte e vida.
Formada inicialmente na área biomédica, com foco na harmonia corporal, postura e reabilitação, Ana migrou para as artes visuais no final dos anos 1990, estudando na Escola de Artes Visuais do Parque Lage entre 1998 e 2003.
Sua obra parte da convicção de que a arte é um caminho para integrar mente, corpo e espírito. Biolchini busca revelar o que chama de “o lado palpável das sutilezas”, entrelaçando fisicalidade e transcendência. Seus trabalhos exploram temas recorrentes como memória, ancestralidade, tradições religiosas, letras hebraicas, meditação e o inconsciente coletivo.
Em 2019, concluiu uma pós-graduação em Arte e Filosofia na PUC-Rio, onde aprofundou sua pesquisa sobre as representações do corpo na arte. Ao longo de sua trajetória, procura costurar esses elementos diversos com o que descreve como um “fio invisível” — uma força poética que conecta todos os aspectos de sua criação.

 Entre a essência e a forma: uma jornada transdisciplinar 

Sou uma artista transdisciplinar que habita um corpo plural em constante movimento. Minha prática artística emerge da dificuldade de conceber, de um vazio que se tornou fonte de criação, sustentada por um processo contínuo de escuta sensível, desapego consciente e transformação permanente. 

De reabilitadora à artista no ateliê, da dor da perda à criação que se erguia dentro de mim ao engravidar — cada transição moldou não apenas minha identidade, mas a própria essência do meu fazer artístico. 

Ana Biolchini, Unitas, 2001.  Pintura em Técnica Mista, 140 x 230 cm. Foto: Wilton Montenegro. Cortesia da artista.

Cada obra nasce da necessidade de explorar as múltiplas camadas da experiência humana, onde as fronteiras entre disciplinas se dissolvem para dar lugar à criação genuína. É na intersecção desses territórios — entre o que sou e o que me torno — que meu trabalho encontra sua força vital, questionando limites e expandindo possibilidades expressivas. 

Acredito que dentro de cada coisa exista uma força criadora — um campo invisível, anterior à forma, pulsando em estado de latência. Como se essa energia surgisse de um espaço atemporal e infinito, ao atravessar a matéria, assumisse contornos visíveis no mundo. A criação, então, é uma dança entre o eterno e o transitório — entre a origem e a dissolução. 

Ana Biolchini, Buraco Negro, 2017 . Cotocolagem digital impressa em papel de algodão,  73,5 x 88 cm. Foto: Peter de Albuquerque. Cortesia da artista.

O corpo como território de investigação 

Minha trajetória se enraíza na escuta do corpo com muitas experiências que abriram caminhos para perceber camadas invisíveis da existência: a densidade da matéria, suas dobras e limites, a relação entre estrutura e fluxo. Descobri que o corpo não apenas executa movimentos — ele é o próprio movimento em sua relação com o espaço. 

No corpo, forma e função são indissociáveis. A curva da coluna vertebral é estrutural e é movimento. A arquitetura dos ossos é suporte, e é dança. A estética, nesse contexto, não é aparência mas  presença: é o modo como afeta o mundo. O corpo comunica em eixos, gravidade, diagonais, pulsações. É por ele que o invisível se revela. 

Da consciência corporal à criação artística 

Minha prática artística nasce da vivência e assume por isso múltiplas linguagens: pintura, fotografia, cerâmica, vídeo, instalação, performance. Como artista transdisciplinar, transito entre campos do saber, abrindo passagens entre corpo, tempo e espaço. A pesquisa com fios é central nesse percurso: fios que conectam memória, ancestralidade, arquétipos, meditação, silêncio. 

Esses fios mais que matéria são também gesto e símbolo. Carregam histórias invisíveis, como sinapses entre o corpo e o inconsciente coletivo. Ao trabalhar com o entrelaçamento de tempos — chronos e kairós, o tempo cronológico e o tempo da alma — minhas obras buscam dissolver barreiras entre passado, presente e futuro, permitindo o surgimento de novas temporalidades. 

Em Pés do Mundo, conjunto de pés em cerâmica moldados um a um nos meus próprios pés, o gesto é ritualístico: um exercício de presença, o íntimo contato da argila com a pele registra em cada pé o testemunho de um instante vivido, vestígio poético de uma travessia. Caminham não apenas sobre a terra, mas também sobre memórias, camadas invisíveis, afetos, geografias internas. 

Desde 2009 a série Pés do Mundo se desdobra em montagens site-specific que se transformam a cada nova ativação no espaço. A série se reinventa ao se relacionar com o tempo, o lugar e o público, em um processo contínuo de transmutação. Cada nova instalação recebe um subtítulo que destaca aspectos específicos do contexto, funcionando como uma nova camada de leitura. O conjunto manifesta, assim, um fio invisível de conexão entre corpo, território e experiência. 

É uma obra em trânsito, que se reconfigura a cada trajeto. E que, ao caminhar escuta e transforma. Em 2024, uma performance de duas horas foi realizada em Governors Island, Nova York, com os coreógrafos Mark Bankin e Laura Mosteller e as bailarinas Collen Edwards e Charlotte Aucella. Em 2025, o projeto se expande novamente em forma de Ação 

Conectiva no espaço Nós da Dança, no Rio de Janeiro, em parceria com o coreógrafo Edilson Roque. 

Performance na Residency Unlimited [RU], Governors Island, 2024. Mark Bankin, Charlotte Aucella e Colleen Edwards. Cortesia da artista.

Ana Biolchini, Pés do Mundo, 2009-em andamento. Instalação Implantação , 2018. Centro Cultural (Cultural Center) Paschoal Carlos Magno, Rio de Janeiro.
Foto: Peter de Albuquerque. Cortesia da artista.

Espaços que atravessam e curam 

Crio obras não apenas para serem vistas. Elas convidam à travessia. São espaços sensíveis que atuam sobre o corpo de quem olha, provocando deslocamentos e, às vezes, cura. A obra não está concluída na matéria: ela pulsa nas camadas vibratórias do sensível, nos ritmos não visíveis que habitam o silêncio e a pausa. 

A arte me transforma e é transformada como um organismo relacional. Atua como catalisadora da integração entre forças humanas e não humanas. É por isso que a arte não é apenas expressão individual, mas instrumento de regeneração coletiva. Em tempos de fragmentação, criar é também um gesto de recompor relações — com o outro, com o tempo, com a natureza, com o que nos transcende. 

Ana Biolchini, Casa Amarrada, 2017. Foto: Eduardo Barros. Cortesia da artista.

A urgência da reconexão 

Vivemos um tempo de crescente desconexão: do corpo, da escuta, da presença. O digital, a aceleração e, agora, a inteligência artificial aprofundam essa cisão entre o ser humano e sua essência. Por isso, criar hoje é também um ato político: é propor espaços onde possamos nos reconectar. 

Desde que iniciei a jornada artística, busco criar experiências que convidem o retorno à origem, ao corpo, ao agora. A arte, nesse contexto, torna-se um meio para restaurar vínculos rompidos — consigo, com o outro, com o planeta.

Ancestralidade e continuidade: Alguidares de Adalberto 

Essa busca pela origem ganhou novas camadas quando me deparei com a obra do meu avô Adalberto — artista, professor e fundador da Academia Livre de Belas Artes de Belém do Pará. Em 1921, ele já reconhecia e  resgatava o valor da arte indígena marajoara e tapajônica. Seu legado ressoou em mim como um chamado. 

Na série Alguidares de Adalberto, crio um ritual de continuidade. A cerâmica, inspirada nas espirais da ancestralidade marajoara, torna-se símbolo de um retorno à semente do ser. O alguidar — utensílio de oferenda nas tradições afro-brasileiras — torna-se recipiente da memória e do sagrado. Nesse gesto, investigo novamente o corpo: da pele à alma, da forma à vibração, da superfície ao invisível. 

Coreografias para o porvir 

Proponho um deslocamento da lógica da produção para a lógica da escuta. É sobre estar plenamente presente e consciente enquanto crio, observando como o corpo se conecta ao espaço. Provoco experiências que ativam outras formas de estar no mundo. Criar relações. Entre corpo e espaço. Entre função e poesia. Entre individual e coletivo. Entre humano e mais-que-humano. Convido o público a experimentar com todo o corpo, a deixar-se tocar, ressoar, mover-se junto. A arte aqui abre o diálogo à verticalização do Ser, enraizamento simultâneo para cima e para baixo. 

O futuro das práticas integradas 

Como artistas, somos coreógrafos da experiência humana no mundo. E o mundo precisa urgentemente de nossa dança integrada. Como podemos criar uma prática onde cada obra contemple e atravesse, cure e comunique? Como podemos nos tornar criadores de ecossistemas de experiência – espaço-objeto-arte que não apenas abrigam a vida, mas a amplificam? 

Para saber mais sobre o trabalho de Ana Biolchini  @anabiolchini.art // www.anabiolchini.art

Ana Biolchini em seu estúdio, 2024. Rio de Janeiro. Foto: M. Lekan. Cortesia da artista.

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