Stephanie Lucchese

Stephanie Lucchese trabalha principalmente com pintura e desenho, criando ficções em cenas que oferecem um vislumbre de um universo inventado, onde formas, frutas, plantas e figuras interagem em movimento constante, devorando-se enquanto o tempo permanece suspenso.

A natureza é crível, tem suas próprias regras. Se o maior interesse da artista ainda reside na ficção, é porque a ficção serve como um portal para lugares mais reais. O tempo mítico, o prazer da nostalgia, a entrada em um ecossistema segundo a lógica que o distingue de outros horizontes — e ali encontrar outro jardim das delícias. No progresso da técnica, a maior celebração da nossa competência é a criação de algo que nos distraia. A imaginação é uma extensão deste mundo para outro.

Leonardo Stockler

1728, eu estava colhendo azeitonas e notei que uma delas estava oca. Dentro, em vez do caroço, vi duas pequenas criaturas brincando. Pareciam humanas, só que muito menores, e enquanto giravam em círculos, o arbusto pegou fogo. Sempre tive visões. Pessoas pequenas no meu travesseiro antes de dormir, alucinações com aranhas, sonhos que se realizam em poucos dias, a morte do cachorro de uma amiga. Ver Deus, ver dentro do meu próprio corpo. Escolho acreditar em tudo porque é divertido e o prazer é sagrado.

Quando entro no ateliê de manhã, acendo uma vela, coloco uma música suave e começo desenhando ou misturando cores. Tenho uma prática espiritual e a prática artística, deriva dela. Desenho cenas da imaginação, da memória e da ficção. Figuras deitadas, um banquete, uma natureza-morta e uma peça de teatro — tudo se devorando enquanto o tempo permanece imóvel. 

Atualmente trabalho em um estúdio muito pequeno em casa, no Brooklyn, NY. Mudei de São Paulo para cá em 2018 e sinto mais saudade do Brasil a cada ano, especialmente durante o inverno em Nova York quando a luz é tão escassa. Amo a hora azul, essa penumbra em que tudo ainda pode ser visto por um instante antes de desaparecer — se estou em casa, gosto de manter as luzes apagadas até que esteja completamente escuro e observar o crepúsculo banhar lentamente a casa. Consigo fazer isso enquanto desenho, mas para misturar cores a óleo preciso da luz do dia. Todo pintor é um nerd da luz, perseguindo uma luminosidade que vive escapando. A experiência é sempre melhor na lembrança.

Meu celular está cheio de imagens de frutas e bichinhos. Algumas eu tirei, outras são capturas de tela. Faço esboços do que me atrai e invento o resto. Algumas partes vêm da memória, de experiências pessoais, de um sentimento. 

Quando tenho um desenho de que gosto, passo para a pintura. Depois que começo, sigo pintando por nove a doze horas. Menos que isso não me parece produtivo, mas depois de um dia longo meu cérebro fica bem frito. Se começo a perder o foco, ouvir narrativas ajuda. Quando não estou com vontade de ouvir música, coloco um audiolivro, um filme que já vi ou uma novela brasileira. Às vezes, meses depois, olho para uma pintura e lembro exatamente o que estava acontecendo na história enquanto eu a pintava. Acho isso engraçado, especialmente quando é uma cena brega de novela.

Ao revisitar minhas memórias da ficção, percebo que uma parte importante do que torna mundos inventados interessantes são seus sistemas, regras e símbolos — uma religião inventada dentro de um romance, por exemplo. Acho a arte sacra fascinante porque é narrativa e extremamente dramática, contando uma história que foi reinterpretada centenas de vezes ao longo dos séculos. A pintura é uma porta para a nostalgia. Uma forma de lançar um feitiço é transformar o desejo em imagem, projetando-o no mundo físico para, com sorte, dobrar a realidade. Fazer arte é uma forma semelhante à brincadeira.

Johan Huizinga disse: “Jogar é uma atividade voluntária executada dentro de certos limites fixos de tempo e espaço, segundo regras livremente aceitas, mas absolutamente vinculativas, tendo seu objetivo em si mesma e acompanhada de uma sensação de tensão, alegria e a consciência de que é ‘diferente’ da ‘vida comum’. (…) A arena, a mesa de cartas, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o tribunal, etc., são todos em forma e função terrenos de jogo, ou seja, espaços proibidos, isolados, cercados, sagrados, dentro dos quais regras especiais se aplicam.”

Gosto de imaginar um lugar e suas regras, seus habitantes e seus comportamentos. Posso fazer dele o que eu quiser, contanto que faça sentido — por isso costumo pintar o que mais amo ou o que sinto mais intensamente. Crescendo em um apartamento numa cidade pequena, passei muito tempo sozinha. Lia livros, jogava videogames, fazia amigos online e muitos desenhos. Algumas das paisagens que visitei virtualmente ainda me inspiram até hoje.

Então, a luz mais brilhante brilhou do céu e eu fiquei cega.

Acordei por dentro e soube que tinha sido Deus. No mosteiro, aprendi que a oração vem primeiro, depois o trabalho, e que se deve tratar as oliveiras como filhos.

Faz tempo, mas lembro de tudo.

Tentei pintar, mas antes de terminar, sempre pega fogo.

Para saber mais sobre Stephanie Lucchese at @stephanielucchese // stephanielucchese.com

Fotos: Anita Goes 

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