Carlos Junqueira: Carlinhos, já estamos gravando! [risos]
Carlos Motta: Acho que podemos começar falando sobre como surgiu a nova cadeira que eu fiz, em termos de desenho e de projeto, né? Quando você e eu conversamos sobre a possibilidade dessa exposição na ESPASSO [“Take a Seat”, em maio de 2025 em Nova York] e do lançamento do livro, tive vontade de fazer uma peça a mais para a Espasso divulgar lá fora e eu lançar aqui [no Brasil]. A poltrona Astúrias já foi vista de tantas formas, tanto as de balanço quanto as fixas, mas a gente nunca teve ela com braços. E é curioso que várias pessoas já vieram aqui no ateliê falar comigo e me perguntar se dava pra fazer uma versão da cadeira com braço e eu sempre me esquivei. Até que um dia, eu estava desenhando em casa, em São Francisco Xavier, e me dei conta de que desenhava basicamente uma Astúrias com braço. E no momento em que ela ganha o braço, mesmo sendo uma peça volumosa, passa a ter um uma apresentação menos outdoor, menos varanda. Ela pode estar indoor e com isso posso usar uma madeira diferente, com acabamento diferente, com uma lustração muito sofisticada, até com goma laca. Não que a Astúrias não seja sofisticada, mas uma peça outdoor nunca pede muito acabamento porque é algo que fica no tempo.
CJ: E o legal é que estamos montando algo que a ESPASSO talvez nunca tenha feito de maneira tão intensa, uma mostra de dez assentos seus. E todos estão no livro [“Carlos Motta”, Ubu Editora], que é uma inspiração e mostra que o seu trabalho vai muito além da Astúrias. Essa foi a brecha que encontrei pra conseguir juntar tudo dentro dessa exposição e mostrar que Carlos Motta é sobre cadeiras. Porque não tem cara que faz cadeira melhor do que você.
CM: E é a história do ateliê mesmo. Eu estou aqui agora e, realmente, é um mar de cadeiras e poltronas. [Risos]
CJ: Eu lembro das suas frustrações e apesar de eu às vezes contestá-las e de às vezes a gente brigar um pouco [risos], eu as entendo, porque por muito tempo existiu uma rusga: quem é o Carlos Motta designer e o Carlos Motta que a Espasso, enquanto loja, apresenta como designer de produto. E agora eu estou realizado porque vamos fazer uma exposição que mostra quem você realmente é como designer, na sua totalidade.
CM: Acho maravilhoso chegarmos a esse ponto juntos. Nunca foi exatamente uma briga, sempre foi sobre o que é a nossa soma, o que resulta dela. A gente alcançou alguns sucessos, principalmente na área de outdoor, focado na própria Astúrias fixa e de balanço, que é uma campeã de vendas em todo canto, seja aí nos Estados Unidos ou aqui no Brasil, porque, aliás, quando eu vejo o faturamento da minha empresa, metade vem de fora do Brasil. Estamos fazendo trabalhos grandes em Dubai, na República Dominicana, na Costa Rica. Porque realmente as pessoas souberam explorar muito bem o meu mobiliário, entenderam meu design e o levaram para outros lugares. E, agora, depois de 20 e poucos anos, na própria Espasso, temos a chance de ampliar o foco para além da Astúrias, para além do outdoor, e trazer toda essa variação de coisas que a gente vende bem pra caramba em diversos lugares. Existe demanda e eu não paro de desenhar peças novas, porque essas peças vão entrando no hall de arquitetos, sejam amigos meus como Tiago Bernardo, o Isay [Weinfeld], o Marcio Kogan, que foi meu vizinho quando eu tinha meus cinco anos de idade, a arquitetos conhecidos deles e arquitetos internacionais. Mas o grande representante do meu trabalho fora do Brasil é você, é a Espasso. E chegou a hora de poder mostrar a amplitude do meu trabalho aí, acompanhado de um livro. Essa exposição é uma parceria nossa em que juntos estamos desenvolvendo um trabalho cultural, comercial.
CJ: Sim! Aliás, há quanto tempo você está em atividade? 50 anos?
CM: É quase isso. A empresa existe desde 1978.
Carlos Motta em frente ao recém-inaugurado Atelier Carlos Motta, 1978. Bairro da Vila Madalena – São Paulo, Brasil. Cortesia do Atelier Carlos Motta.
Imagem à esquerda: Carlos Motta, Poltrona Asturias, 2001. Imagem à direita: Carlos Motta, Cadeira de Balanço Asturias, 2001. Cortesia da ESPASSO.
CJ: E no começo era só você, né? No começo da ESPASSO, eu lembro bem de dividir, muitas vezes com você, minhas dificuldades, não só em conversas legais mas em outras, com um pouco de atrito [risos]. Eu não tinha, por exemplo, nem o espaço nem o dinheiro para fazer uma exposição sua, tudo tinha que ser pequenininho. Hoje, eu quero trabalhar de uma forma onde todas as lojas da Espasso estejam interconectadas. Ou seja, o seu lançamento vai acontecer simultaneamente em LA e Miami.
CM: Que maravilha, Carlos. Acho que isso é uma tremenda maturidade do seu trabalho e da nossa parceria. Eu gosto de pensar que você foi uma espécie de abre-alas do design brasileiro, começando no quarto andar de um prédio no Queens. Foi um momento oportuno [2002], mas ainda assim com muita dedicação, muito risco e uma possibilidade remota de dar certo. Eu me lembro de uma vez que fiz uma exposição em Londres e ao contar pro meu pai, que era muito irônico, ouvi: “Ah, que legal, mas você vai ver, no dia seguinte eles viram a página e tem uma exposição do Afeganistão, no outro dia, viram a página e tem uma exposição da Escandinávia. Entenda que você é só mais um”. Foi um jato de água gelada. Fiquei puto da vida. Fui pra Londres, fiz a exposição e o que aconteceu no dia seguinte? Viraram a página e tinha uma exposição da Escandinávia. Mas você não pensou dessa maneira, você se apropriou da tal “página”. E deve ter sido muito duro comercialmente, financeiramente e também no sentido de aprendizado. Porque o Brasil era muito despreparado para mandar os móveis com responsabilidade lá para fora. Seja responsabilidade da origem da madeira, da embalagem, da documentação. Tudo isso era complicadíssimo no início. Eu achava que você ia desistir e tirar essa mochila de pedra das costas, mas nada disso. O showroom foi rapidinho do Queens para Manhattan e depois expandiu para Los Angeles, Miami, Londres. Carregou nas costas o comércio e a consolidação do design brasileiro lá fora.
CJ: Paralelo a isso os irmãos Campana, que não tinham nada a ver com a ESPASSO, estavam fazendo muito sucesso, principalmente na Europa.
CM: Foram as duas pontas de flecha que correram paralelamente para a divulgação do design brasileiro: a ESPASSO, com toda a sua peregrinação, e os irmãos Campana, fazendo um trabalho altamente conceitual que teve uma visibilidade absurda. Hoje a Espasso é uma empresa conhecida mundialmente como representante de design brasileiro. Então, quando a gente lembra desse tempo no Queens, é uma viagem… a gente comendo uns pedaços de pizza fria na esquina, você com pressa para subir e arrumar o chão da exposição. Deu no que deu.
Showroom da ESPASSO em Long Island City (Queens), Nova York, 2002.
Carlos Junqueira (à esquerda) e Carlos Motta (à direita) em frente à ESPASSO Nova York durante a exposição de Motta em 2018. Cortesia da ESPASSO.
CJ: Agora, Carlinhos, eu vou te dizer… o trabalho é tanto que chega uma hora que fica cansativo e começa a perder a essência de como foi construído. Aquilo pra mim eventualmente foi perdendo a identidade e agora eu voltei de uma maneira tão intensa, que me chamam agora de, como é que é? Micromanager [risos]?
CM: Obsession Micro Management.
CJ: Isso. E eu não quero controlar a coisa toda, mas eu quero que esse core, essa essência da ESPASSO sejam expressados da maneira correta.
CM: Se você fosse definir… Qual é a essência da ESPASSO a que você se refere?
CJ: Quando a gente começou, tinha de tudo – tapete, bowl, móveis, tudo. Como eu não sabia qual seria o resultado financeiro e como é que eu ia sobreviver, coloquei tudo lá dentro. Se não vendesse um móvel, vendia um bowl. Se não vendesse o bowl, vendia uma luminária. E isso foi acabando porque começou a virar uma empresa grande. Mas pode ser uma empresa grande e manter os conceitos iniciais e hoje eu conto com essa turma maravilhosa ao meu lado, que não existia quando comecei. Quando eu comecei as pessoas ainda não conheciam Sergio Rodrigues, Joaquim Tenreiro, mas saía muita matéria sobre a ESPASSO porque não tinha outra igual no mundo. É um mix de cultura, um mix de pessoas, mix de sofrimentos, de riqueza, entendeu? E assim a ESPASSO foi indo e agora eu brigo por ela.
Carlos Motta, Muirá Bowl, 2019. Cortesia da ESPASSO.
Carlos Motta, Luminária Koguma, 2015. Cortesia da ESPASSO.
CM: Isso é legal porque você não está comunicando apenas um produto, uma peça utilitária, mas de certa forma está comunicando a história do design brasileiro. Na realidade, desde a primeira vez que você conversou comigo sobre representar móveis brasileiros aí fora, a gente já sabia que mostrar um designer só, seria inconsistente. Então, você se propôs a mostrar a identidade do design brasileiro através das obras de vários nomes. O que é essa identidade? E por que é diferente da identidade do design italiano ou do design escandinavo ou japonês? Nós temos nossos hábitos, nossas madeiras, nossas maneiras de nos relacionarmos com a vida, com a própria natureza, com a mão de obra. Tanto que você pediu para o Ruy Teixeira ir a São Francisco Xavier, onde eu moro, e fotografar minha casa e o mobiliário, para ver bem como é a minha vida lá, que é bastante na mata, na floresta, na água. E quando não é lá, é na praia, é no surf e na pesca. Então, eu acho que esse modo de viver muito do lado de fora e todas essas vivências que o brasileiro tem acabam repercutindo bastante nos nossos produtos, nos nossos itens utilitários e na nossa arquitetura. Tudo isso reflete bastante a nossa maneira de ser: a água, as árvores, o mato, a cachorrada. E através das fotos do Ruy, por exemplo, talvez alguém aí em Nova York possa ver uma poltrona Astúrias, ou qualquer outra coisa do meu design, e entender direitinho o contexto em que eu vivo.
CJ: É perfeito isso que você está falando – e pouca gente sabe, inclusive, que você é também um arquiteto -, porque o mobiliário habita na casa. Então tem que fotografar a casa. A gente precisa contar a história completa.
CM: Sim, é consolidar com muita clareza onde o design brasileiro está. Sabe, eu passei um tempo na Escandinávia para observar o mobiliário e foi muito interessante e culturalmente importantíssimo para mim. Mas voltei tão impressionado com a frieza… algo tão distante da minha maneira de viver, da minha escala de valores. O que é importante pra mim não tem tanta importância para eles e vice-versa. Então, tudo isso acaba encaminhando todos os nossos hábitos e informam as peças com as quais a gente convive. Quando você visita uma tribo indígena na Amazônia, por exemplo, é uma vida rústica e você tem pouquíssimas peças, mas são peças muito inteligentes, feitas especificamente para uso e estilo de vida deles.
CJ: Sim, é sobre as circunstâncias, o olhar e a maneira de interpretar as coisas. E também sobre os materiais que temos à disposição.
CM: Nossas madeiras são maravilhosas e elas têm características muito diferentes. Cada uma é boa pra alguma coisa e eu sempre gostei de pesquisar sobre isso. Os esforços no mobiliário, principalmente nas cadeiras, são esforços diferentes. Então eu pude realmente escolher madeiras para corresponder ao que eu esperava do resultado final de uma peça. E, mais ainda, encontrando madeiras de demolição, que já foram utilizadas. Noventa por cento do trabalho que eu faço é reutilizando madeiras. Derrubar uma árvore é uma coisa muito triste. E mais uma questão que eu acho importante é que todo o grupo que trabalha na produção de mobiliário tenha participação no lucro. Caso contrário, fica aí esse merda do Elon Musk juntando dinheiro até o infinito, levando dinheiro até pra Marte, sabe? E não é assim. É importante ter participação cultural, financeira, participação na alegria e nas horas difíceis. Tem que diminuir a carga horária o máximo que der, trabalhar menos e com mais eficiência. Tudo isso junto destila a qualidade do design e da arquitetura porque isso é a humanização do trabalho. E isso é um pilar fortíssimo para mim. Esse conjunto todo, que inclui o desenho e a responsabilidade social e ambiental, para mim, é o que forma a modernidade do design brasileiro.
Carlos Motta, Banco Flexa (alto e baixo). Cortesia Atelier Carlos Motta.
Carlos Motta, Saquarema Poltrona Giratória Lounge, 2005. Cortesia Atelier Carlos Motta.
CJ: That’s great, Carlinhos. Another point I wanted to bring up—something closely tied to the work I’m doing—is getting Brazilian design into museums. We’ve already started with the Mole armchair [by Sérgio Rodrigues], and I plan to keep going. So tell me, which chair would you like to see in a museum?
CM: I’m heading to Portugal tomorrow, and I’ll be passing through Lisbon to visit the Design Museum there—they have an Astúrias armchair on display. It’s an old museum, a beautiful space, and every time I see that chair there, it really moves me. I think the topic of museums is super important, but there needs to be a clear context—design today has to reflect environmental and social responsibility. Otherwise, it feels totally disconnected and, to me, has very little meaning. It’s no use admiring a gorgeous Prada bag if it was made under near-slave labor conditions. Or a piece that uses materials extracted in a horrible, destructive way—ignoring environmental and social issues—and then sells for thousands of dollars on Fifth Avenue. That’s just completely wrong.
CJ: Absolutely. And you’re right—there are design pieces already in museums that probably wouldn’t pass that test today. But look, your seat collection, for example—it invites people to understand the very context you’re talking about. Through photos, objects, materials, books—all of it speaks to the identity of Carlos Motta, the designer. They reflect different periods, different processes, and different emotions you went through.
CM: Exactly. But they’re all connected by the same thread.
CJ: The chair is a part of the designer’s essence. A successful chair encapsulates thought, energy, timing, struggle, and emotion—it’s much more than just an object.
Carlos Motta, Cadeira Lounge Java Lounge, 2014. Cortesia Atelier Carlos Motta.
Carlos Motta e Mestre Toninho, Marcenaria na Vila Madalena (Rua Aspicuelta), Brasil. Foto: Paula Brandão. Cortesia Atelier Carlos Motta.
Carlos Motta, Cadeira Maresias, 2016. Cortesia Atelier Carlos Motta.
CJ: Muito legal, Carlinhos. Outro ponto que eu queria trazer e que tem a ver com esse trabalho que eu estou fazendo é sobre colocar o design brasileiro em museus. Nós já começamos com a poltrona Mole [do Sérgio Rodrigues] e eu tenho o plano de continuar. Que cadeira você gostaria de ter no museu?
CM: Eu estou indo para Portugal amanhã e eu vou passar em Lisboa, lá no Museu de Design, porque eles têm uma poltrona Astúrias. É um museu antigo, um lugar muito bonito, e quando vejo a poltrona lá eu acho o máximo. Eu acho o assunto sobre museus muito importante, mas precisa ter esse contexto muito bem explicado de que o design hoje engloba essas responsabilidades ambientais e sociais. Caso contrário, para mim fica uma coisa completamente por fora e com uma validade muito pequena. Não adianta eu ver uma bolsa maravilhosa da Prada feita com mão de obra quase escrava. Ou alguma peça que para ser feita utiliza materiais que foram extraídos da natureza de um jeito horroroso, sabe, ignorando os problemas ambientais e sociais, e custando não sei quantos mil dólares na Quinta Avenida. É completamente equivocado.
CJ: Com certeza. E é isso, há peças de design que já estão em museus que talvez não passem nesse crivo. Mas, olha, essa exposição dos seus assentos, por exemplo, de certa forma convida a um entendimento desse contexto que você propõe. Fotos, peças, material, livros. E todos esses elementos trazem a mesma identificação com o designer Carlos Motta porque são períodos diferentes, processos diferentes e emoções diferentes que você estava passando.
CM: Exato. Mas todas elas têm o mesmo fio condutor.
CJ: A cadeira é uma parte desse designer. É uma cadeira que deu certo. A coleção abrange pensamento, energia, timing, sofrimento e emoção de maneira mais ampla.
CM: Carlos, era legal ter algumas dessas fotos do Rui na exposição, né? Umas fotos de arquitetura, do mato, do mobiliário.
CJ: Sim, acho bem legal. Vamos contextualizar isso de um jeito que todo mundo saia com entendimento e também com perguntas.
CM: Carlos, de repente dá pra fazer com lambe lambe, uma impressão top num papel de menor qualidade.
CJ: Sim, seria bem legal, mas ainda não entramos nisso. Estamos abrindo a exposição Carmel [Armchair], do Sérgio Rodrigues, com três cadeiras idênticas umas às outras e cada uma tem dez anos de diferença, mas voltamos a falar para montar essa sua ideia. Quando você volta de Portugal? Tem algumas fotos legais da Astúrias no museu?
CM: Eu volto no dia 26 ou 27. Não sei se tem, mas qualquer coisa eu faço. Lembra daquela foto tão bonita da Astúrias na casa daquela cantora, a Alicia Keys? É uma foto linda. Não sei se pode usar.
CJ: Sabe uma coisa que a gente não fez? O sofá redondo Astúrias. Puta merda.
CM: É o sofá do Paul McCartney. Eu tenho uma foto dele dentro da oficina, uma foto linda também.
CJ: Vamos ver isso tudo, então. Vou te liberar porque sei que você tem uma reunião agora. Um beijo! Vamos falando.
CM: Obrigado, Carlos!
Imagem à esquerda: Toninho, Zeco e Béu, por volta de 1970, na Marcenaria da Rua Purpurina, Vila Madalena, Brasil.
Imagem à direita: Carlos Motta em frente à sua Marcenaria, 2010. São Francisco Xavier, Brasil. Foto: Fernando Laszlo. Cortesia Atelier Carlos Motta.
Carlos Motta, Banco Marajó, 2019. Cortesia da ESPASSO.
Para saber mais sobre a ESPASSO: @espasso // www.espasso.com
Para descobrir mais sobre Carlos Motta: @ateliercarlosmotta_oficial // www.carlosmotta.com.br