Eustáquio Neves, série Arturos 1993-95. Fotografia técnica mista, 50 x 60 cm. Cortesia do artista.
Rodrigo Mitre: Cara, que prazer falar com você. É uma honra esse convite.
Eustáquio Neves: Quando a Anita [Goes] me convidou para participar do Art Dialogues, considerei vários amigos com quem poderia bater um papo, mas pensei, o Rodrigo é um cara muito legal e nós nunca tivemos a chance de conversar de verdade [risos]. Já nos encontramos algumas vezes, mas essa é a oportunidade de ter nossa primeira conversa, de estreitar esses laços que já são bem fortes. Você é mineiro, né?
RM: Eu sou de Belo Horizonte.
EN: Eu me criei aí, cara. Eu sou de Juatuba, que hoje é praticamente uma grande BH, mas eu fui para BH com 11 anos, para morar com uma tia e estudar. Esses dias mesmo estava conversando com uma pessoa que não é daí, contando para ela sobre quando eu era jovem, de ir beber no Maletta e depois ir para o Bolão no final da noite. Um dia, atravessando o Viaduto Santa Tereza, que na verdade é na floresta, eu vi uns caras andando em cima do arco e eu quis passar também. Um amigo meu passou, o outro estava no meio do caminho. Quando foi minha vez, eu travei. E fiquei muito aborrecido por não ter conseguido atravessar. Mas agora sei que um amigo que é arquiteto, você deve conhecer, o [Fernando] Maculan, tem um projeto de fazer uma passarela de bambu ali em cima.
RM: Olha, que legal!
EN: Vai ser minha oportunidade de passar no arco do Viaduto Santa Tereza.
RM: Belo Horizonte é um lugar quase de resistência artística, né? Principalmente nas artes visuais. Da música não falo porque é incrível, mas para as artes visuais aqui é um polo de resistência, porque são muito poucos os equipamentos culturais relevantes que movimentam a arte contemporânea de verdade. Mas a cidade respira contemporaneidade. E ouvir você citando Viaduto Santa Tereza… É um lugar no baixo centro de Belo Horizonte, que se você vai numa sexta feira à meia noite, encontra o samba da meia-noite com uma bateria de Ketu que é um acontecimento. Outra coisa que eu gosto muito de acompanhar, é uma molecada incrível que faz a batalha de Rima no domingo, também embaixo do viaduto. E isso me dá uma esperança porque é uma galera super jovem discutindo contemporaneidade, política, vivência. As questões que a gente vive muito com relação à sociedade – a desigualdade, o racismo. E na hora que você vê isso tudo sendo pautado por uma juventude… O baixo centro de Belo Horizonte é um lugar que eu recorro muito para pesquisa. Para entender o que realmente estamos fazendo e produzindo e o que é realmente relevante a gente apresentar. Dá uma esperança para o futuro ver isso acontecendo em Belo Horizonte. Uma cidade que é capital, mas ao mesmo tempo um pouco deslocada do eixo das coisas, principalmente nas artes visuais. Existe uma importância como um lugar de experimentação e também de resistência. Sou muito grato pelo que a cidade também nos proporciona, sabe? Tem uma comunidade negra incrível que tem cada dia mais se apropriado desses espaços públicos.
EN: Eu sou de uma outra geração, né? Peguei um pouco disso que você está vivendo, mas os movimentos eram outros e tal. As pessoas me perguntam muito sobre referências na fotografia. Um dia desses, recorrendo a uma memória dessa época de adolescência, lembrei que a gente fazia uma série de coisas meio fora do eixo e outras no eixo. Quando tinha lá meus 13, 14 anos, e alguém lançava disco lá nos Estados Unidos, levava alguns meses para chegar aqui no Brasil. Aí tinha a Pop Rock, que era ali na Rua Tupis, do lado do Shopping Cidade. A gente saía da escola, e passava lá e ouvia o que tinha de novo de black music, de rock. E eu lembro de quando lançaram o filme “Shaft” naquele cinema, onde hoje é o Shopping Cidade, a fila dobrava o quarteirão e eu fiquei na fila para ver o filme. Hoje fico pensando que o Gordon Parks faz parte da minha vida há algum tempo, mas eu só descobri o cara enquanto grande fotógrafo do movimento negro alguns anos atrás. Enfim, são essas conexões que vão formando a gente mesmo que às vezes leve um tempo para percebermos.
RM: Sim. Já que estamos meio que se reconectando e se reapresentando aqui, vou te contar um pouco dessa minha vivência também. Eu venho de uma família evangélica e costumo falar que sou uma das primeiras experiências de cota, apesar de não ser cota exatamente. Minha mãe era professora no Colégio Batista. Então, com quatro filhos, era sorte nossa ser bolsista nessa escola e graças a ela tenho uma formação de escola particular, mas foi uma formação rígida. E eu caí muito novo como office boy de uma galeria de arte em 1996, com 19 anos, e fiquei nessa galeria durante quase 12 anos. Um ano depois que eu comecei como office boy, eles me colocaram numa galeria em um shopping, o Ponteio, e era um projeto de um arquiteto daqui de Belo Horizonte, o Carico, que parecia uma grande vitrine. Às sextas-feiras não tinha ninguém naquele shopping e eu ficava em completo tédio. O recurso que eu tive foi começar a entender que todo sábado tinha um baita movimento no shopping, então, como a loja era uma vitrine e ficava vazia na sexta, eu desmontava tudo, as paredes todas, jogava tudo para fora da galeria e ia remontando. Uma coisa muito intuitiva, mas mal sabia eu que eu estava começando a lidar com expografia, né? Então, todo sábado de manhã tinha uma galeria nova, uma montagem nova. Esse início de experiência foi muito legal. Tive muitas trocas com artistas. Eu falava que minhas férias era ir a São Paulo para visitar museus, o que também era algo intuitivo. E acho que tenho muita referência por conta dessa curiosidade que sempre tive.
EN: Claro!
RM: Aí nos anos 2000 começa a acontecer aqui em Belo Horizonte, paralelamente a Inhotim, um movimento do Adriano Pedrosa e do Rodrigo Moura para criar o Bolsa Pampulha. A primeira geração do Bolsa Pampulha é a minha geração, né? Laís Myrrha, Sara Ramo, Cinthia Marcelle. Então, também tive muita sorte de viver esse momento de maior atenção e profissionalização da arte em Belo Horizonte, com uma nova geração chegando e começando a trilhar o caminho da arte. Inhotim também ajudou muito com isso. Mas essa galera está toda trabalhando pelo Brasil e pelo mundo afora. Quando eu saí desse shopping, em 2003, eu assumi um pouco a produção e a gerência da galeria do Manoel [Macedo], já produzindo exposições. Em 1994, esse era o maior espaço pensado em arte contemporânea no Brasil e o Manoel tinha uma visão de como abrigar um trabalho de arte contemporânea. E foi muito legal, porque foi um período em que eu estive muito próximo dos artistas dos anos 1970 que tinham uma grande visibilidade no Brasil. Lógico que hoje a gente enxerga questões práticas: muitos homens, muitos brancos, mas ainda assim artistas que tiveram grande importância. Eu produzi Artur Barrio, Antonio Manuel, Wanda Pimentel, Anna Maria Maiolino, Sandra Cinto, Tunga, Zé Rezende e artistas jovens que vieram do Bolsa Pampulha. E foi um momento de muito aprendizado em que comecei a entender o que era produção, expografia, como criticamente trazer um curador ou um pensador. Lateralmente, eu fiz um curso de Gestão Cultural, fiz Administração de Empresas, Comércio Exterior. No final do meu curso de Administração, eu encontrei a primeira pílula do que é hoje a Mitre Galeria, ao fazer um projeto de empreendedorismo que era parte do meu TCC. Naquele tempo, o Amílcar de Castro ia todo sábado à galeria do Manoel, conversar e beber com ele. Eles tinham uma loucura de querer abrir uma galeria de jovens artistas e o Manoel falava que ia dar o nome da galeria de Esperança. Aí quando eu fui fazer esse meu projeto, fiz a Galeria Esperança em homenagem ao Amílcar, que já tinha falecido. Montei mesmo uma galeria dentro da universidade, com obras e tudo, e fiz um plano de negócios. Em 2008, eu me formei e deixei a galeria do Manoel para ir para a área de tecnologia, trabalhando com uma empresa parceira da Inglaterra, mas o dono era da África do Sul, que se chamava Ubuntu.
EN: Era ali na Savassi?
RM: Era, era ali em São Pedro.
EN: Acho que cheguei a trocar ideia com uma pessoa nessa empresa.
RM: Sério? Será que você trocou ideia comigo? Ou com o meu primo?
EN: Cara, não sei. Eram uns caras que entendiam muito de computadores. Então, pode ser que eu tenha conversado com um de vocês aí há muito tempo.
RM: Pois é, cara, que coisa! E Ubuntu vem dessa palavra africana, né, que evoca humanidade para todos e a empresa tinha a ver com software livre e essa coisa de ser um lugar muito colaborativo, muito democrático. E isso me pegou muito. Eu acho que hoje essa palavra faz também muito sentido dentro da Mitre Galeria. Mas eu fiquei cinco anos nesse meio de tecnologia, no início do Instagram e redes sociais e tal, o que me ensinou muito sobre como me comunicar. Mas eu nunca consegui deixar a arte de lado. Eu era feliz porque trabalhava de segunda à sexta, desligava meu computador às 17h00 na sexta e só voltava na segunda. Depois que eu voltei a trabalhar com arte, nunca mais aconteceu isso [risos].
EN: É assim mesmo.
Eustáquio Neves, série Caos Urbano, 1992 – 95. Fotografia técnica mista, 50 x 60 cm. Cortesia do artista.
RM: Em 2012, fui ver um recorte da Bienal de São Paulo no Palácio das Artes e tinha um vídeo do Rodrigo Braga em que ele estava no meio da floresta com uma árvore gigantesca, gritando para aquela árvore. E eu senti que era eu gritando pra voltar pra esse lugar. E foi aí que eu decidi voltar para a arte, com o projeto de abrir a Galeria Esperança, mas eu acabei voltando a trabalhar na galeria do Manoel, assumindo a diretoria. Aí voltamos a fazer uns projetos muito legais, inclusive na SP-Arte com o Lorenzato, junto com Adriano Pedrosa e Rodrigo Moura. Mas em 2015 eu abri uma galeria, com muita vontade de ter um frescor. Por cinco anos essa galeria aqui se chamou Galeria Periscópio, e a gente fez mais de 40 projetos. Toda exposição tinha um pensador crítico, um registro fotográfico. E isso foi muito importante porque em 2020 eu consegui fazer um livro sobre os cinco anos da Periscópio. E quando a gente começou a organizar esse livro, isso me ajudou a entender os caminhos para onde esse projeto estava apontando e viemos para esse espaço novo aqui no Barro Preto. Não sei se você já esteve aqui.
EN: Eu preciso fazer uma visita.
RM: Está mais do que convidado! No final de 2022, eu comprei a parte dos meus sócios e mudei o nome para Mitre Galeria, já nesse novo espaço. Já fizemos 20 projetos nesses quatro anos, entre coletivas e individuais. E acho que a gente tem essa marca de trazer artistas com pesquisas contemporâneas, buscando entender o momento, o que nos atravessa. E cada dia mais essa galeria tem a cara do Brasil. Não é uma galeria racializada, mas tem a cara do Brasil.
EN: É abrangente, né?
RM: Sim, muito diversa, com artistas muito espalhados pelo Brasil. Acho que agora temos um entendimento melhor do lugar que a gente ocupa, participando de feiras internacionais, com muitos artistas circulando pelo mundo. Luana Vitra, por exemplo, que é uma das artistas com quem a gente está trabalhando no projeto de Bienal de Sharjah, com o Sculpture Center em Nova York em 2025, e está atualmente com uma galeria em Inhotim e duas individuais em museus, kunstiinstitute em Roterdã na Holanda e MUPA, Museu Paranaense em Curitiba, Paraná. Davi Jesus Nascimento acabou de voltar da Frieze Nova York, o Marco Siqueira também fez exposição lá ano passado lá e agora está com outra na Mendes Wood DM de Nova York. E aí tá vindo uma novidade que é o espaço novo da galeria em São Paulo, né?
EN: Pois é. Eu vi isso aqui na minha pesquisa.
RM: Conseguimos achar o espaço, vai ser no bairro dos Jardins. Está em reforma e a ideia é que até o final do ano a gente tenha esse segundo espaço da galeria para continuar propondo novos ares além de Belo Horizonte e também em São Paulo.
EN: Que massa isso!
RM: Estamos nesse fluxo.
EN: Acho que é um fluxo que só vai somando, né? Como um rio que vai recebendo seus afluentes e vai crescendo. Acho que é por aí. E você me sanou uma grande curiosidade que eu tinha a respeito da sua galeria nesta cena de Belo Horizonte. Eu venho de um outro tempo em que Belo Horizonte era um lugar muito segregado e as galerias eram para poucas pessoas. Não existia um interesse em saber quem está fazendo algo novo ou que vai trazer uma nova proposta. Eram sempre as mesmas pessoas nos mesmos lugares. Não se dava muito espaço para essas pessoas que estavam vindo.
RM: E todos da mesma classe social, né?
EN: É! O Palácio das Artes era uma coisa horrorosa, um lugar que as pessoas não iam porque não era um lugar de pertencimento, sabe? Apesar de ser um lugar que trouxe tantas coisas geniais, e ainda traz, mas do qual grande parte da população se sentia excluída porque não havia uma política inclusiva ali. Inclusiva no sentido de incentivar a população e reforçar que lá era um lugar público. Não era bem assim. Era um lugar público que em vez de oferecer coisas para toda a população, oferecia coisas para um grupo de pessoas. E aí quando eu vejo projetos como o seu, fico muito curioso. Como que esse cara consegue sair dessa bolha? Porque eu vivi muito isso.
RM: Tem umas coisas que ainda hoje eu não entendo com relação ao Palácio das Artes, que ainda acho que é um dos poucos que que têm uma preocupação com o fomento da arte contemporânea de verdade, né? Mas ainda tem coisas que me incomodam ali. Aquela grade que divide o Palácio das Artes com o Parque Municipal está sempre fechada, por exemplo, e o fato do Palácio ficar fechado na hora da feira livre no domingo. São questões fáceis de serem resolvidas, mas acho que tem alguns problemas de segurança e técnica que eles precisam repensar. Eu sou daqui e lidei com esse mercado muito branco, muito elitizado, que não é o meu caso, por muito tempo. E acho que os artistas resistem e essa galeria também resiste a isso tudo. Se eu dependesse de um mercado específico de Belo Horizonte para essa galeria acontecer, eu não estaria vivo. E é uma galeria baseada em Minas, mas é uma galeria brasileira. Acho que em torno de 40% dos artistas são mineiros, e isso faz sentido considerando que eu venho desse lugar. Mas a gente tem artistas do Norte, do Nordeste, Centro-Oeste. E a ideia é buscar essa sobrevida e essa sobrevivência um pouco fora de Belo Horizonte. Então, acaba que a gente tem uma vivência e uma penetração mais extensa no eixo maior do mercado de arte contemporânea brasileira que é São Paulo e também está começando a fazer um caminho internacional da galeria. É um movimento de resistência, de formação mesmo. Belo Horizonte é uma cidade muito jovem se comparada a Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo. E eu também entendo que estamos criando uma identidade do que é esta cidade. Uma identidade que precisa ser protegida e fomentada. A gente que é da cultura, das artes visuais, da música, tem que entender que é uma construção de identidade e também como contar verdadeiramente essas histórias já que a gente vem de um país colonialista, em que as histórias foram contadas pelos colonizadores, pelas pessoas que estavam explorando, e não realmente como elas deveriam ser contadas. Eu acho que temos esse papel de recontar várias histórias, né?
EN: Esse é o nosso papel, sem dúvidas. E sempre fico muito feliz assim quando vejo pessoas preocupadas, e não só preocupadas, mas que estão fazendo esse movimento sobretudo com inteligência, né? A gente está cheio de questionamentos, mas é preciso saber lidar com esses questionamentos. Não é tão simples assim: ah, eu quero fazer! Você pode fazer o que você quer, mas existem fronteiras em nosso entorno que não deixam a coisa ser tão simples assim. Então, fico imaginando que você teve que romper algumas dessas barreiras para fazer muita coisa.
RM: Se você pensar em proprietários de galerias de arte no Brasil, acho que eu sou mesmo um ponto muito fora da curva. Eu me olho no espelho e me vejo assim. Minha identidade, né? E não sou herdeiro. É a construção de um projeto com toda a dedicação e também de acreditar muito no que isso tudo pode significar no futuro. Eu estou feliz com tudo o que a gente já construiu , mas eu quero que isso cresça, porque acho que tem a ver com pautar o que nos atravessa. Pra mim, na arte contemporânea, hoje mais do que nunca, é muito necessário que a gente siga discutindo e mostrando o que está nos atravessando. Contemporâneo para mim é o dia de hoje.
EN: E é legal quando você chega nesse lugar de referência, digo, em que você é a referência. Porque vem uma galera aí que consegue olhar para isso e pensar: é possível!
Luana Vitra, Pulmão de Mina, Bienal de São Paulo, 2023. Ferro, prata, cobre, pedra de minério de índigo e corda. Fotos: Victor Galvão. Cortesia da Mitre Galeria.
Davi de Jesus do Nascimento’s, Furor de Peito e Remela, 2022. Embarcação a vela com derranhos da série “Gritos de Alerta”.
Mitre Galeria, Belo Horizonte, Brasil. Foto: Eduardo Eckenfels . Cortesia Mitre Galeria.
Marcos Siqueira, instalação, Mendes Wood DM, NovaYork, 2024. Foto: Dheurle Photography. Cortesia do artista e Mendes Wood DM.
RM: Acho que foi possível e está sendo possível para você também , né? Alguns artistas com quem eu trabalho tem você como referência e muitas vezes as pesquisas deles atravessam o que vem construindo ao longo da sua trajetória. E como é bonito ver que isso não é meramente por conta de um fazer, mas também por questões muito mais amplas que passam pela nossa vivência, nossa ancestralidade, nossas crenças e como isso vai fomentando novas produções. E eu fico muito honrado em ter esse papo porque você é uma pessoa que é referência pra mim e para vários outros da minha geração e de gerações mais novas. A gente tem em você um desbravador. Porque estou desde 2015 fazendo algo que você está fazendo, na luta, há muito tempo. E construindo uma obra com coerência, o que é realmente incrível.
EN: Eu, como você, não sei viver de outra forma a não ser fazendo isso. Assim, eu sei, é claro que eu sei, mas isso é muito visceral, muito importante para mim. Eu lembro de uma pessoa que queria fazer uma entrevista para um jornal e eu não estava muito a fim de estar em mídia nenhuma. Eu só queria estar ali no meu canto, fazendo minhas coisas. E eu falei: “cara, eu não tenho nada para dizer”. E o cara não gostou muito e perguntou o que eu faria se as portas se fechassem para mim. Olha, eu sei cozinhar, eu sei fazer uma porrada de coisa, coisas de pedreiro [risos]. Mas não tem essa história de fechar a porta quando você acredita naquilo que está fazendo de verdade. Você é que abre as portas. Elas não vão se abrir para você, não é assim. Mas eu estou feliz de conversar contigo porque eu tinha muita curiosidade de saber sobre a sua trajetória.
RM: Hoje eu vi um título de uma obra que eu adorei. Algo assim: Não é navio negreiro, são navios guerreiros. Muita gente guerreira veio pra cá. Eu estou com uma ideia de fazer um passeio pelas minas de Ouro Preto e estava falando sobre isso ontem. Os escravizados que eles escolhiam para vir pra cá eram aqueles que tinham habilidade de achar minas na África. Como esse país foi construído por mãos pretas, né? A força do trabalho é uma força guerreira de mãos pretas em todos os sentidos. Sendo no ferro, na mineração, na lavoura. E é uma loucura, como também essas situações que acontecem me atravessam também. Eu costumo falar que eu acordo em guerra todo dia. Hoje eu escolho estar em alguns lugares e escolho não estar em outros lugares para me proteger mesmo.
EN: Eu costumo dizer que a gente vive a cada dia uma fronteira, sabe? Porque essas fronteiras, elas são invisíveis, e a cada dia você tem que ultrapassar uma fronteira dessa no seu cotidiano. A gente está vivendo isso de uma forma muito… não sei se vitoriosa seria bem a palavra, mas a gente consegue resolver isso. Quando você está passando no serviço alfandegário e aí vem aquelas conversas… Eu já cheguei a falar: olha, se você quiser me deixar entrar no seu país, tudo bem. Se não quiser também, foda-se. Eu nunca tive nenhum tipo de atrito, mas eu já tive conversas muito sérias com os caras. Eu estava sendo barrado, mas as perguntas, de certa forma, na verdade, são meio idiotas, né? Os caras fazem um curso de psicologia e precisam fazer certas perguntas. Aí, se você é de cor, o cara tem umas perguntas para você. Se você é latino, ele tem outras perguntas para você. Eu não vou responder o que eles querem ouvir, eu vou responder o que eu quero falar.
RM: Claro.
Eustáquio Neves, série Crispim: Encomendar de Almas, 2007. Fotografia técnica mista, 30 x 48 cm. Cortesia do artista.
Eustáquio Neves, série Arturos 1993-95. Fotografia técnica mista, 50 x 60 cm. Cortesia do artista.
EN: Mas no dia a dia da gente aqui nesse meio das artes, que é um meio, a princípio, de privilegiados… A gente é privilegiado de estar nisso, mas não porque alguém deixou que a gente estivesse nesse meio e, sim, porque a gente é desse meio, podemos ser desse meio, a gente pertence a esse meio. A gente faz com que isso aconteça, porque a gente precisa do que a gente faz. Ninguém está fazendo nenhum favor para nós.
RM: Não tenho dúvida. Eu gostei muito dessa frase aí e vou começar a usar: eu não vou falar o que eles querem ouvir, mas eu vou falar o que eu quero dizer. E essa galeria tem muito disso.
EN: Tem! E eu não vou falar o que o cara quer ouvir, sabe? Não vou mesmo. Acho que essas são posturas de resistência. Atitude é um pouco sobre você ter um posicionamento. Se eu fosse falar das histórias que já aconteceram comigo, a gente ia ficar aqui uma tarde inteira [risos]. Mas eu vou te contar uma. Isso foi em 1999. Existe esse prêmio, que foi o maior prêmio pago em dinheiro na fotografia, e era fomentado pelo banco JP Morgan. Não sei se você já ouviu essa história. Era algo como: o Brasil no final do século e a perspectiva para o novo milênio. Eles convidaram 25 fotógrafos e eu era um dos 25. Depois que me perguntaram se eu queria participar, eles me mandaram o regulamento e tal. E aí tinha uma pessoa escrevendo sobre mim que queria escrever naquela linha de: ‘o cara é preto, ele é fodido, teve sempre a vida fodida’. E eu falei: cara, você não vai achar esses perrengues na minha vida. Os meus perrengues são perrengues de artista. Se eu fiquei sem dinheiro um período, foi porque eu decidi que queria fazer isso aqui. Eu poderia estar trabalhando em outra coisa, ganhando dinheiro, porque tenho uma formação em química e trabalhava com isso, ganhava dinheiro com isso. Eu poderia simplesmente voltar para a química. Mas queria fazer fotografia. E, enfim, eu estava muito sem grana nesse período. Eu tinha que decidir se pagava aluguel, comprava material para trabalhar ou comprava comida, não dava pra dividir pra tudo. E aí esse prêmio dava R$1.000,00 só pela participação. E ainda tinha uma aquisição de R$ 5.000,00. Eu pensei, pô, se eu ganhar cinco mil… fico com o resto do ano livre.
RM: Dá uma ajudada boa, né? [risos]
EN: E tinha também um grande prêmio de R$ 25.000,00. Esse eu nem cogitei, né? Mas quando me mandaram o regulamento, ele simplesmente me excluía porque era aquela coisa bem clássica de fotografia de imagem, margem, etc. Eu falei para eles que queria muito participar, mas o regulamento me excluía, então, não ia dar. Eu ia perder os R$ 1.000,00, mas não queria participar de algo que não condiz com como eu penso fotografia, como eu faço fotografia.
RM: Claro!
EN: Aí tiveram uma reunião e chegaram à conclusão de que eu estava certo e eles não podiam limitar essas coisas e agradeceram por eu levantar a bola. Então eu fiz o trabalho. E fiz conforme o regulamento, com uma margenzinha. Dei uma provocada até [risos]. E eu ganhei os R$ 25.000,00. Eu queria ter a liberdade de fazer o trabalho e podia fazer o que o regulamento pedia, mas não podia ficar preso a isso.
RM: Eu não me furto de criar tensão quanto estou certo do que eu quero. E embora muito cansativo porque parece que a gente fica tensionando o tempo inteiro, é muito mais prazeroso porque os resultados vêm. Se a gente tem muita certeza do caminho que a gente está trilhando, a gente tem que brigar por ele, né?
EN: Exato. E eu acho, Rodrigo, que não é forçar a barra. Acho que é outra coisa. Você não sabe nem viver de outro jeito. Acho que é isso. Estou super feliz com esse papo. E acho que ele não acaba aqui, né?
RM: Não tenho dúvidas!
EN: Quero te visitar aí. Espero que você me visite algum dia aqui.
RM: Com certeza. Muito obrigado, querido.
EN: Valeu mesmo e um abração.
Eustáquio Neves, série Seven, 2023. Fotografia técnica mista, 150 x 80 cm. Cortesia do artista.
To learn more about Eustáquio’s work: @eustaquioseven
Exposições:
- 2023: 35th Bienal de São Paulo, São Paulo, SP;
- Exposição Quilombo: problemas e aspirações do negro, Inhotim, MG;
- Quilombismo, HKW Berlin, Germany;
- Dos Brasis – SESC Belenzinho, São Paulo, SP;
- Entre Nós – Dez anos Bolsa Zum – IMS/SP, Pivô/SP;
- 2022: Individual: Outros Navios – Fotografia de Eustáquio Neves – SESC Ipiranga/SP;
- MEDPHOTOFEST 2022 – Catania, Italia;
- 2020: The FotoFest Biennial 2020, Central Exhibition African Cosmologies: Photography, Time, and the Other;
- 2019: Aberto pela Aduana – Museu Afro Brasil, São Paulo, SP;
- 2017: Cartas ao Mar – International Discoveries VI, FotoFest, Houston, TX;
- 2016: Arquivo Ex Machine, Itau Cultural, São Paulo, SP;
- Cartas ao Mar – Museu Afro-Brasil, São Paulo, SP;
- 2015: Cartas ao Mar – FotoRio, Rio de Janeiro, RJ;
- 2014: Terceira Bienal da Bahia, Salvador, BA;
- 2013: PHOTO ESPAÑA/BRASIL – SESC Consolação, São Paulo, SP;
- III Forum Latino
Americano de Fotografia – São Paulo, SP; - Afro-Brazil, Brazilian Photography – IFA Galerie, Stuttgart, Germany;
- 2012: Mythologies: Brazilian Contemporary Photography – Shiseido Gallery, Tokyo, Japan.
A Mitre Galeria, fundada em 2023 por Rodrigo Mitre, surge com o compromisso de contribuir para um imaginário social diversificado e efervescente no Brasil, e com a firme crença na prática artística como um motor chave para a transformação positiva do indivíduo e da sociedade. A galeria vem articulando propostas que ativam o cenário das artes contemporâneas em Minas Gerais, no Brasil e além, com um grupo de artistas de diferentes gerações, formações e práticas. Com um programa baseado em invenções estéticas que mudam perspectivas, provocando um reexame do passado e da imaginação do futuro, ao mesmo tempo que nos ancoram nas questões do presente, Mitre reafirma a sua busca por iniciar ações instigantes que nos conduzam ao desconhecido, abraçando o mistério como uma força vital. O ano de 2023 consolida a projeção global da galeria com a participação em importantes feiras e exposições. Entre eles, a exposição individual de Marcos Siqueira na Frieze, em Nova York, e a presença de destaque das artistas Luana Vitra na 35a Bienal de São Paulo e Isa do Rosário na Bienal de Liverpool. Em 2024, a galeria participou pelo segundo ano consecutivo da Frieze NY com um estande solo do davi de jesus do nascimento, e planeja abrir seu segundo espaço em São Paulo, ao mesmo tempo em que expande suas atividades pelo mundo.
Para mais informações sobre a Mitre Galeria @mitregaleria // mitregaleria.com
Imagem do abre: Eustáquio Neves, série Caos Urbano, 1992 – 95. Fotografia técnica mista, 50 x 60 cm. Cortesia do artista.